COMO A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL É ATRAVESSADA POR DIFERENTES TEMPORALIDADES E POR QUE ISSO IMPORTA PARA O PRESENTE
Rodrigo Turin
“O passado nunca está morto. Nem sequer é passado”. A célebre frase de William Faulkner tem sido recuperada nos últimos anos por diversos historiadores para expressar uma mudança de sensibilidade em relação ao tempo. Em oposição a uma visão do passado como “aquilo que passou” ou como “algo que não mais existe”, essa nova sensibilidade temporal tem apontado para as diferentes formas como o passado se faz presente. Isso é mais evidente, à primeira vista, para as experiências traumáticas do século XX, como o Holocausto ou as violências das ditaduras latino-americanas, que continuam a assombrar o nosso tempo contemporâneo. Mas essa mesma ideia também é pertinente, de maneira mais geral, para os passados fundantes da nossa ordem político-social, como é o caso da Independência. Dito de modo mais claro: a Independência, como experiência histórica, não pode ser reduzida a uma série de eventos singulares ocorridos há 200 anos, mas deve ser entendida como algo que reverbera profundamente e de diferentes modos em nossa experiência presente – queiramos ou não.
E o que significa isso, objetivamente? Significa que pensar esse passado, hoje, implica um duplo exercício: entender o modo como ele ainda nos constitui e, simultaneamente, as formas como nós o constituímos. No primeiro caso, é fundamental entender como esse evento criou novas realidades que ainda nos afetam, como o Estado-nação ou a ideia de um “povo brasileiro”, mas também um modo próprio de conceber o tempo. A construção dessa realidade política, o Estado-nação brasileiro, dependia de uma nova forma de legitimação e de orientação do poder. Se, no Antigo Regime, os monarcas absolutistas tinham suas legitimidades assentadas em princípios teológicos ou dinásticos, não precisando que seus súditos se reconhecessem como integrantes de uma história comum, o Estado-nação demandava a criação de uma identidade homogênea, cujo tecido era a própria temporalidade. No mesmo movimento em que a ideia moderna de soberania cobrava um vínculo representativo entre o Estado e a sociedade, formava-se um novo conceito de história que reordenava as relações entre passado, presente e futuro. A singularidade da nação deveria se espelhar na singularidade de um tempo nacional, abarcando todos os sujeitos que, a partir de então, deveriam ser entendidos como “brasileiros”.
Nesse processo de singularização e homogeneização do tempo nacional muitos foram hierarquizados ou simplesmente excluídos, como é o caso das mulheres, dos indígenas e dos escravizados. Afinal, a homogeneização do tempo da nação implicava a universalização de uma singularidade, no caso, a do homem branco e proprietário. A temporalidade da cidadania era, portanto, assimetricamente distribuída ou mesmo vetada, de acordo com os corpos e as posições sociais. E isso implicava todo um gerenciamento político e social, com suas tecnologias próprias, definindo quem podia votar, quem podia ser eleito, quem podia se manifestar, mas também quem podia ser narrado como agente histórico. Uma dessas tecnologias de sincronização nacional foi a própria disciplina histórica. Caberia a ela posicionar diferentes sujeitos, espacialmente distintos, em um mesmo tempo – fazendo-os reconhecerem-se em um mesmo presente, herdeiros de um mesmo passado, construtores de um mesmo futuro.
É certo que a elaboração desse tempo nacional também permitiu a sua disputa e mesmo sua contestação, por mais restringidas e limitadas que fossem. Desde a Independência temos vários exemplos – resgatados de forma contundente pela historiografia contemporânea – das resistências dos sujeitos subalternizados, reivindicando espaços e reelaborando formas de figuração do futuro nacional. De todo modo, não há como negar a hegemonia daquela temporalidade singular e linear na sincronização dos indivíduos e das instituições, orientando-os a um futuro cuja promessa apontava para realização plena da homogeneidade nacional. Um futuro, é importante enfatizar, cuja força estava menos em sua concretização do que no ato mesmo da promessa sempre reiterada, e cuja funcionalidade era justificar os sacrifícios de cada presente e suas hierarquias. O tempo da nação sempre foi, portanto, um tempo sacrificial para boa parte de sua população, penalizada em nome de um horizonte grandioso a ser aguardado.
Talvez o que mais se destaque nos modos de relação que nosso presente mantém com o evento da Independência seja a perda da evidência daquela forma de futuro que marcou o tempo da nação. Uma pesquisa recente, promovida pelo Museu do Amanhã, indicou que 77% dos jovens manifestam incerteza em relação ao futuro, do mesmo modo como se constatou, em outra pesquisa, que 69% dos brasileiros acreditam que o país está em declínio. Sem contar os efeitos da crise climática, que ameaçam a própria existência de qualquer futuro humano. Não espanta, nesse sentido, que disputas políticas hoje recorram muito mais a imagens de passados idealizados perdidos do que propriamente a projetos de futuros diferentes e inéditos.
Tudo isso revela como aquele futuro da promessa da nação tem se tornado, em nosso presente, cada vez mais opaco e incerto, tendo sua própria existência colocada em questão. Esse esvaziamento da temporalização futurista e singular da nação também não deixa de estar estreitamente relacionado à emergência pujante daqueles outros tempos que foram repetidamente apagados em nome da sincronização nacional. Os tempos que se abrem com as lutas dos movimentos negro, indígena, quilombola, feminista, LGBTQI+, são tempos que não se colocam como simples substituições para uma nova monocultura temporal da ideia de nação. Eles representam, acima de tudo, uma forte reivindicação de formas próprias, alternativas e plurais de viver o tempo. Com isso, o modo de presença do passado da Independência, hoje, é marcado pelo desafio de enfrentar os efeitos da forma de temporalidade que herdamos dele, nos levando a considerar se é possível pensar a nação para além da singularidade temporal que a fundou. Um passado, enfim, que nos cobra outras formas de imaginar futuros, assim como novas perspectivas de futuros que nos demandam outras formas de visitar esse passado.
Rodrigo Turin é professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e autor do livro Tempos precários: aceleração, historicidade e semântica neoliberal (Zazie, 2018). E-mail: rodrigoturin@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2385-9961
Saiba mais
KRENAK, Ailton. O eterno retorno do encontro. In: Novaes, Adauto (org.). A Outra Margem do Ocidente. São Paulo: Minc-Funarte/Companhia Das Letras, 1999.
PIMENTA, João Paulo G. A independência do Brasil como uma revolução: história e atualidade de um tema clássico. História da historiografia, Ouro Preto, v. 2, n. 3, p. 53-82, 2009. DOI: https://doi.org/10.15848/hh.v0i3.69.
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