Das matas às vilas, em rebeliões ou por escrito, os indígenas atuaram politicamente de diferentes formas na independência do Brasil
João Paulo Peixoto Costa
Para começo de conversa, é preciso saber que não havia (assim como não há hoje) uma forma única de ser indígena. Na década de 1820 eram compostos por incontáveis línguas, culturas, tradições, espiritualidades e formas de ver o mundo. Além disso, e talvez o mais importante para o que discutimos aqui, estavam submetidos a variadas condições sociais. Daí é fácil imaginar a diversidade de posições assumidas, das condições de envolvimento e dos impactos vivenciados pelos povos indígenas na independência do Brasil.
Os que habitavam seus próprios territórios, até então com pouco ou nenhum contato com os não indígenas, cada vez mais sofriam com a expansão agrícola. Com a independência, à frente da elite política e fundiária, Dom Pedro I deu seguimento às ordens que seu pai, Dom João VI, havia dado em 1808 e 1809 para eliminar os ditos “selvagens” das matas dos atuais Sul e Sudeste brasileiros. A tendência de avanço em territórios de povos não integrados à sociedade luso-brasileira seguiu firme em outras regiões do Brasil, com muitas mortes, escravizações, resistências e negociações. Apesar das grandes transformações políticas – chegada da corte ao Brasil, Revolução do Porto e Independência –, para esses indígenas, as invasões eram as mesmas e os desafios ainda maiores.
A discussão política sobre se os indígenas seriam ou não considerados cidadãos estava em aberto. O debate iniciou ainda nas cortes de Lisboa, parlamento que passou a governar o império português a partir de janeiro de 1821, como desdobramento da Revolução do Porto. Mas não havia dúvidas quanto à grande parcela da população indígena cujos ancestrais viviam integrados aos não índios fazia décadas ou séculos. Habitavam fazendas, pequenos lugarejos, vilas e cidades, na condição de homens livres e trabalhando de aluguel para proprietários e governos ou em terrenos próprios.
Esses grupos tinham uma longa tradição de relações de troca e fidelidade com o rei, por quem seus antepassados haviam lutado. A figura do monarca representava amparo contra os abusos de proprietários, ambiciosos de suas terras e de sua mão de obra. Por isso muitos índios tenderam a apoiar o príncipe regente quando as cortes de Lisboa impuseram o retorno de Dom João VI a Portugal e rivalizaram com Dom Pedro. Portanto, durante a independência, o que estava em jogo para alguns grupos indígenas era a defesa de seu protetor e, principalmente, a segurança de suas terras e a luta por condições dignas de trabalho.
Em regiões diferentes e tão distantes, esses povos acompanhavam as discussões na alta política e o que era decidido tanto em Lisboa quanto no Rio de Janeiro. Agiam diante dos debates mais amplos e, por vezes, na defesa de grandes projetos, mas sempre conectados com questões locais e a partir de objetivos próprios. A partir das relações com proprietários vizinhos, autoridades da Igreja e de governo e outros grupos inferiorizados, davam forma às suas muitas atuações.
Os índios se envolveram em conflitos bélicos durante a Independência do Brasil. Várias tropas indígenas foram recrutadas para proteger o território contra uma possível invasão da antiga metrópole, como no litoral cearense entre setembro e novembro de 1822. Outras foram convocadas para combater agrupamentos fiéis a Portugal, como a que veio da serra da Ibiapaba, no Ceará, para um Piauí que ainda lutava contra tropas lusitanas em março de 1823.
Houve aqueles que empunharam seus arcos e flechas compondo revoltas e motins por motivos muito variados. Os mesmos que adentraram em terras piauienses, fiéis a Dom Pedro I, participaram de saques a casas de pessoas abastadas na vila de Campo Maior, dando gritos de “morra, é corcunda”! Termo pejorativo usado contra os inimigos da separação Brasil e Portugal, nessa situação foi estendido aos ricos, os verdadeiros inimigos das populações marginalizadas. Já os índios da vila de Cimbres, em Pernambuco, se posicionaram em 1824 a favor de Dom João VI. Motivados por desavenças contra as elites pernambucanas, também se opuseram à Independência e à Constituição.
No entanto, o que parecia ser mais comum era o engajamento dos índios no projeto de Brasil independente e identificando-se como “brasileiro”. No Pará, entre 1823 e 1824, houve incontáveis episódios de envolvimentos indígenas em revoltas. Nelas, buscavam muito menos se contrapor a europeus e mais lutar por uma nova posição social que não mais os obrigasse ao trabalho forçado. As disputas em torno do “ser brasileiro” expressavam os projetos políticos dos índios para a construção de uma nova ordem em que não fossem mais uma parcela inferiorizada das sociedades. Por motivo semelhante, a índia Dionísia e suas companheiras expulsaram da povoação de Baepina, no Ceará, em julho de 1822, o padre Felipe Benício Mariz e outras duas autoridades na base de bofetadas! Os índios vereadores da câmara de Vila Viçosa saíram em sua defesa, argumentando em um ofício que os escorraçados eram “inimigos da causa brasílica”, assim como os membros da Junta de Governo do Ceará, que deveria ser destituída.
Há ainda muito o que se pesquisar sobre a diversidade da atuação indígena na Independência, que ia da rebelião às ações escritas. Agiram de formas variadas e em condições bem distintas, com projetos próprios para o novo país e se valendo, inclusive, de preceitos liberais. No entanto, o Estado que se formou em seguida rapidamente os marginalizou. A Constituição de 1824 sequer os menciona, revelando o silêncio como método de um Estado de proprietários para, entre outras coisas, destruir o ancestral direito indígena à terra. Fato é que não se pode compreender a Independência do Brasil sem o protagonismo indígena e a importância do debate sobre essas populações na formação do país. As lutas atuais, como contra a aberração jurídica do “marco temporal”, têm uma longa e aguerrida história de povos que sempre estiveram e estarão por aqui.
João Paulo Peixoto Costa é professor do Instituto Federal do Piauí, do Profhistória da Universidade Estadual do Piauí e autor do livro Na lei e na guerra: políticas indígenas e indigenistas no Ceará (1798-1845) (EDUFPI, 2018). E-mail: joao.peixoto@ifpi.edu.br .
Saiba mais
DANTAS, Mariana Albuquerque. Dimensões da participação política indígena: Estado nacional e revoltas em Pernambuco e Alagoas, 1817-1848. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2018.
MACHADO, André Roberto de A. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do Antigo Regime Português na província do Grão-Pará (1821-25). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2010.
MOREIRA, Vânia Maria Losada. A caverna de Platão contra o cidadão multidimensional indígena: necropolítica e cidadania no processo de independência (1808-1831). Revista Acervo. Rio de Janeiro, v. 34, n. 2, p. 1-26, 2021.Disponível em: https://bit.ly/3IFQtIb. Acesso em: 27 jan. 2022.
MOREL, Marco. Independência, vida e morte: os contatos com os Botocudo durante o Primeiro Reinado. Dimensões. Vitória, v. 14, p. 91-113, 2002. Disponível em: https://bit.ly/3o3oLNs. Acesso em: 27 jan. 2022.