De como um francês bonapartista movimentou os negócios editorais brasileiros logo após a Independência
Joana Monteleone
Em 1824, aportou na capital do país que nascera há poucos anos um livreiro, editor e jornalista francês. Pierre Plancher chegava com malas e bagagens pesadas, por assim dizer. Trazia no navio em que viajava todo o equipamento necessário para montar uma tipografia – não era pouca coisa e não era nada leve. Vinham com ele alguns trabalhadores que sabiam manejar as prensas e imprimir os livros. Desembarcar com uma mala era uma coisa, mas querer aportar com uma tipografia e seus trabalhadores era algo bem diferente.
O Brasil era uma país novo: tornara-se independente apenas dois anos antes. Os modos de governo ainda estavam se constituindo, com avanços e recuos entre a população, a elite, os políticos e o novo imperador, D. Pedro I. Plancher saíra da França de Napoleão Bonaparte, que foi derrotado em 1815. Desde então imperava o retorno ao governo absolutista dos Bourbon, o que, na prática, significava restrição de direitos civis conquistados com a Revolução de 1789, suspensão da liberdade de imprensa e perseguição aos apoiadores do regime bonapartista.
Diante das perseguições, que eram mais fortes para um editor independente, Plancher decide sair da França rumo ao “novo” continente – ficou na dúvida se iria para a Suécia, os Estados Unidos, países com liberdade de imprensa, ou para o Brasil. Mas acabou escolhendo as terras brasileiras, que era uma jovem monarquia que prometia poder relativo ao governante e cuja língua estava próxima à que falava.
Plancher era um editor criado nas águas turbulentas dos anos finais do Antigo Regime, da Revolução de 1789 e dos anos de Napoleão Bonaparte. Publicou as obras completas de Voltaire e as edições de Dante, John Milton e Schelling. Foi o primeiro editor francês de Walter Scott. Gostava principalmente do debate político e chegou a nomear sua editora de “librairie politique”, “editora política” em português. A si mesmo, chamava de “editor das Câmaras do Deputados”. Mas quando começou a imprimir uma obra de Saint-Edme sobre Napoleão, em 1820, as autoridades suspenderam suas atividades e sua permanência na França ficou comprometida.
O Brasil havia assegurado a liberdade de imprensa há pouco. Parecia, aos olhos do mundo, um lugar promissor para se instalar uma tipografia. Além disso, os novos tempos da independência fomentavam os debates políticos de maneira acalorada, e Plancher percebeu que podia participar ativamente da vida política na nova monarquia, como sempre gostou de fazer. Assim, nos primeiros meses de 1824, ele aportou no Brasil disposto a investir e fazer novos negócios.
Ao chegar, Plancher expressou seus “sinceros votos d´hum verdadeiro amigo, testemunha das grandes revoluções na Europa e instruído pela experiência de seus estragos e seus flagelos”. Mas as coisas não eram tão fáceis quanto podiam parecer da Europa e a entrada no país foi tumultuada. O editor francês precisou pedir a intervenção direta do jovem imperador D. Pedro I. Depois de resolvido o imbróglio, disse: “A minha gratidão para os benefícios da sua majestade o Imperador e de muitos dos seus ministros não tem limites: vítima de uma intriga para que não tendo dado motivo algum, achei-me desterrado do Brasil mesmo antes de minha chegada; porém Sua Majestade mandando informar o meu negócio, justiça me foi feita”. A justiça do imperador, na verdade, era uma isenção especial de impostos de importação para todo o equipamento.
Assim, a tipografia e editora foi aberta provisoriamente em março de 1824 na rua dos Ourives, n. 60. No começo do século XIX, livrarias, tipografias e editoras se misturavam num mesmo estabelecimento e com Plancher não foi diferente. Com as máquinas estavam também os livros já impressos na França e que podiam ser vendidos para uma elite ilustrada que lia em francês no Brasil. Então, vieram com ele obras de D’Alembet, Diderot, Condillac, Montesquieu, Mirabeau entre outros escritores menos conhecidos. Poucos meses depois, Plancher já sabia que a melhor rua do Rio de Janeiro para fazer negócios era a rua do Ouvidor e foi lá, no número 80 e depois no número 95, que abriu lojas maiores.
O tipógrafo francês foi, sobretudo, um homem de negócios – rapidamente dominou o português e passou a imprimir obras, trabalhando principalmente para o governo imperial, com a impressão de catálogos administrativos ou econômicos. Foi a tipografia de Plancher que imprimiu a Constituição do Império do Brasil, o que nos mostra o grau de confiança do imperador para com a editora recém-instalada.
Com uma enorme capacidade de inovação e vontade de prosperar, Plancher vai lançar um guia de ruas do Rio de Janeiro e outra espécie de guia para estrangeiros na cidade, além de um manual de conversação francês-português. Lançou logo uma espécie de almanaque, o Folhinhas de algibeirra e de porta, e, em 1827, o Almanack Plancher, mais completo, inspirado pelos almanaques iluministas e revolucionários que lia em Paris. O almanaque era completo, com nome da nobreza, endereço de comerciantes e profissionais liberais da cidade, além de textos pequenos e informativos.
Naturalmente não demorou muito para que Plancher começasse a publicar periódicos e panfletos políticos – na época, o país vivia um intenso debate sobre seu futuro e sobre a construção da jovem nação. Esses debates se traduziam tanto em acaloradas discussões legislativas, quanto também nesses panfletos e periódicos políticos. Saíram, assim, Spectador Brasileiro, que dura até 1827, a Revista Brasileira “das ciências, artes e indústria”, e o Propagador das Ciências Médicas.
Dessa maneira, com seu espírito empreendedor e com vontade de fazer negócios, Plancher se tornou um nome importante e conhecido na corte brasileira, que começava a se estabelecer. Suas relações com imperador, contudo, foram conturbadas. Três meses depois de aportar no Rio, recebeu o título de “Impressor real”, apesar da existência da Typographia Nacional. Seu equipamento e suas técnicas de impressão eram as mais modernas possíveis para a época.
Plancher era um apaixonado por política e não tardou a se envolver nos discursos, ideias e práticas do novo Brasil que surgia. Assim que desembarcou, lançou o Spectador Brasileiro, que saiu em 28 de junho de 1824 – a gratidão a D. Pedro I evidenciava as tentativas de estabelecer seu negócio e prosperar no Brasil sob as graças do imperador. O jornal acabou em maio de 1824, tendo um artigo polêmico em defesa do ministro da Guerra, o conde de Lajes, João Vieira Carvalho. O imperador se envolvia diretamente nas discussões políticas, escrevendo sob pseudônimo. Depois disso, o jornal foi logo substituído pelo L´Indépendent, feuille de commerce politique et littéraire teve dez números, publicados entre 21 de abril e 24 de junho de 1827, saindo semanalmente, aos sábados. O título fazia uma referência explícita aos acontecimentos de 1822, além de reforçar a ideia de liberdade de imprensa. No jornal, a guerra da Cisplatina, críticas teatrais e numerosos artigos. Mais uma polêmica e as folhas foram substituídas pelo L´Écho de l´Amérique du sud. Mas seu jornal mais famoso e comercialmente bem-sucedido foi o Jornal do Commercio, que ele comprou, sob o nome de Diário Mercantil, de Francisco Manuel Ferreira, em 1827. Anúncios, loterias, polêmicas políticas e problemas para homens que faziam negócios no novo império faziam da própria publicação de Plancher um desses novos negócios prósperos.
O Jornal do Commercio nasceu sob o signo na nova nação. A publicação fazia negócios com anúncios de escravos, preços de mercadorias que saíam e entravam nos portos e anúncios das próprias embarcações que chegavam e partiam. Colocava em suas páginas os pilares do que viria a ser o império brasileiro: um país escravocrata, com a economia baseada na monocultura agrícola e inserido nas comodidades do mundo moderno e tecnológico do século XIX (mas apenas para alguns). Rapidamente, o jornal fez sucesso como negócio, até que Plancher o vendeu para voltar para a França.
O editor francês viveu intensamente os anos que se seguiram à Independência – foi um ator político fundamental na formulação e consolidação do projeto de nação de D. Pedro I. E foi justamente essa proximidade que fez com que deixasse seus negócios no Brasil e partisse de volta para a Europa, em 1834. Sem D. Pedro no Brasil, que voltara a Portugal para lutar contra Maria Isabel, Plancher se viu isolado e sem apoio do Estado. Mas, nesses primeiros anos do Brasil, o editor fez escola e tornou-se lembrado por muito anos ao longo do império.
Joana Monteleone faz Pós-Doutorado na Cátedra Jaime Cortesão da Universidade de São Paulo (USP) com o tema "Açúcar e Industrialização". Atua, principalmente, nos seguintes temas: história do império, história do consumo, história da alimentação, história da moda, história e urbanismo. É autora dos livros "Sabores Urbanos" (Alameda, 2015), "Toda comida tem uma história" (Oficina Raquel, 2017) e co-organizadora de "A história na moda, a moda na história" (Alameda 2019). Email: joana@alamedaeditorial.com.br Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0035-4293
Saiba mais
DAECTO, Marisa Midori. O império dos livros. São Paulo: Edusp, 2011.
MOLLIER, Jean-Yves. O dinheiro e as letras. São Paulo: Edusp, 2010.
SENNA, Ernesto. O velho comércio do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: G. Ermakoff,
2006.