Em 1972 a ditadura buscou fazer do 7 de setembro a festa que eternizaria o seu modelo de nação.
Fabrício de Sousa Morais
A palavra sesquicentenário tem um som estranho. Todos nós já ouvimos e estamos familiarizados com o termo centenário, porém quando agregamos o prefixo sesqui algo não soa bem aos ouvidos. A ideia é acrescentar “mais uma metade” – esse é o significado estrito de sesqui – a uma centúria, chegando ao total de 150 anos. Isso soa artificial, como quase tudo que diz respeito à construção das nações. Por outro lado, poderia ser ainda pior, caso o termo usado fosse tricinquentenário, que é quase um trava-língua.
O dia dos festejos do Sesquicentenário da Independência do Brasil, em 1972, não foi a primeira vez em que o aniversário de um século e meio de um evento histórico foi comemorado. Encontramos em jornais menções aos cento e cinquenta anos da Independência dos Estados Unidos (1926) e da Revolução Francesa (1939). Também houve comemorações brasileiras, cito duas: o nascimento do Duque de Caxias (1953) e a Abertura dos Portos (1958).
Em 1972, já corria o oitavo ano do golpe que colocou os militares no poder. Na economia, o Brasil vivia os anos do chamado “milagre econômico” (1969-1973), fenômeno que se caracterizou por um forte crescimento da economia, só que com um grande aumento da desigualdade social entre ricos e pobres. O cenário político foi marcado pelo Ato Institucional nº 5 (1968), que minava, na prática, qualquer possibilidade de uma oposição legal à ditadura, pois, entre outros fatores, suspendia o habeas corpus para os chamados crimes políticos.
É nesse contexto que as comemorações vão se desenrolar. E uma boa amostra do modelo de comemoração implantado pela ditadura foi o espetáculo Som e luz: quatro séculos do Brasil. O jovem leitor e a jovem leitora deste texto talvez tenham alguma dificuldade para visualizar o funcionamento desse evento, mas vale a tentativa: efeitos luminosos e sons foram utilizados para encenar a História do Brasil. Não existia a participação direta de pessoas, apenas as vozes gravadas previamente; uma luz acende, ouvimos sons – um cavalo galopando ou uma pessoa falando, por exemplo – e usamos a imaginação para montar a cena completa. Eu gostaria de dizer que havia elementos mais interessantes no espetáculo, mas não posso. Era só isso mesmo.
Não devemos nos esquecer da distância temporal. Há meio século é possível que os efeitos de Som e luz causassem algum impacto na memória das pessoas que foram até o Museu do Ipiranga, na cidade de São Paulo, no dia 7 de setembro de 1972, para assistir ao espetáculo.
Aqui surge um grande problema: quase ninguém viu as luzes ou conseguiu ouvir os sons. Os números de pessoas que tentaram assistir ao espetáculo são díspares, variando entre 150.000 e 300.000. Essas milhares de pessoas que se espremiam, por causa de um cordão de isolamento feito pela polícia, não conseguiram apreciar bem o evento. Elas estavam muito distantes do local do espetáculo. Só quem estava em uma arquibancada montada para a ocasião, com capacidade para cerca de 500 pessoas, pôde acompanhar a apresentação tal qual havia sido pensada. Apenas os convidados VIP, principalmente autoridades políticas, como o general que comandava o Brasil naqueles tempos, Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), desfrutaram desse espetáculo de aproximadamente 70 minutos.
Som e luz foi um fracasso, nunca funcionou como deveria. A ideia original era a de que se tornasse uma atração regular do Parque do Ipiranga, algo que aconteceu apenas entre 1974 e 1975. Foi só nesse período que houve alguma periodicidade nas apresentações, com relatos dos jornais da época de que elas ocorriam três vezes por semana. Contudo, já no ano seguinte, 1976, os mesmos jornais afirmavam que os equipamentos estavam quebrados, impedindo a continuidade das apresentações e o Parque era tido como abandonado.
As comemorações do Sesquicentenário da Independência foram feitas para justificar a forma de poder político vigente, criando uma conexão, uma linha direta entre a configuração histórica ditatorial, o presente, e a data da independência, o passado que merece ser lembrado (vide a ligação entre Pedro I e o general Médici entre 1822 e 1972 na moeda comemorativa que ilustra este texto). Nesse enredo, não há espaço para a atuação popular, para o protagonismo daqueles que compõem a nação. O povo, que fique nítido, é a plateia, é o público, em pé, tomando sol e chuva, sendo espremido por um cordão de isolamento, enquanto, segurando nas mãos de seus filhos e filhas, via de longe uma comemoração que não representa nossa história.
A versão governamental das comemorações do bicentenário da independência tem buscado representar a história da nação de maneira pálida e sem graça, como foi feito pela ditadura com o Sesquicentenário. Para evitar que essa seja a única versão, é preciso que lutemos, o bom combate de ideias, para ultrapassar os cordões de isolamento e mostrar que a História brasileira é muito mais que sombras de pessoas estranhas vistas ao longe.
Fabrício de Sousa Morais é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB – Campus João Pessoa) e autor do livro Pátria nossa a cada dia: o sesquicentenário da independência e a construção da nação (2022). E-mail: fabriciomorais@gmail.com.
Saiba mais:
ALMEIDA, Adjovanes Thadeu Silva de. O regime militar em festa. Rio de Janeiro: Apicuri, 2013.
CORDEIRO, Janaina Martins. A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento. Rio de Janeiro: FGV, 2015.
REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.