Os desafios dos Kaingang em tempos do Império
"[...] No futuro, outros índios instruídos com eu, ao de surgir e continuar a luta em defesa dos direitos dos povos indígenas [...]”. Marçal de Souza Guarani em Terra dos Índios.
Danilo Kaingang
O período que pretendemos abordar no texto compreende os anos de 1822 e 1889. Estes anos são registrados na história brasileira como da Proclamação da Independência do Brasil e da proclamação da república. Analisar o período e abordar a história dos povos indígenas no Brasil é de extrema importância, haja visto que muito ainda está por ser feito. Esses anos marcaram o início da formação do Estado brasileiro com nação, o único país da América Latina que se torna uma monarquia, ao contrário dos demais que se organizaram em forma de república. Torna-se importante, então, a investigação e a análise do que esta nova nação passa a pensar para os nativos que aqui ainda sobrevivem. Entre eles está o povo Kaingang na região Sul, principalmente no Rio Grande do Sul para quem o período imperial foi marcante.
Iniciamos nosso bate papo, então, pelos últimos ataques no período colonial aos direitos dos povos indígenas. Com a chegada da família real em 1808, o príncipe regente D. João VI, reinventou as “guerras justas” e a “escravidão indígena”, através das publicações das Cartas Regias, de 13 de maio, 24 de agosto, 05 de novembro de 1808 e 1º de abril de 1809. Essa ação acaba assinalando um grande retrocesso para alguns avanços que aconteceram na legislação do século anterior. Essas ações acabaram avançando para o período imperial, como veremos adiante.
Outro documento importante que ajudou a delinear as ações indigenistas junto aos povos indígenas no pós-independência foi o texto “Apontamentos para a Civilização dos índios Bravos do Império do Brasil” de José Bonifácio de Andrada e Silva (1823). O documento foi apresentado às cortes portuguesas e recebeu parecer favorável na primeira assembleia constituinte, mas não foi incorporado ao texto constitucional. As cartas régias de D. João VI atendiam aos interesses dos colonos que aproveitando-se dos documentos que autorizavam guerra aos Botocudos de Minas Gerais estenderam a guerra para outras regiões, para outros grupos indígenas. Já, os Apontamentos de Bonifácio entendiam que o controle e as ações junto aos indígenas seriam de responsabilidade dos religiosos, isto é, da Igreja.
O advento da independência no Brasil não trouxe mudanças significativas para vida dos povos indígenas. Como notamos, no pós-independência essa população ainda está sofrendo as consequências das Cartas Régias publicadas por D. João VI em 1808 e 1809. Além de enfrentar “as guerras justas”, autorizadas pelas cartas régias, as populações indígenas passam também a enfrentar a chegada de novas glebas de imigrantes, agora alemães, nas regiões Sul e Sudeste a partir de 1824. O império passa a partir de então, a lançar e executar um projeto de incentivo à colonização, com o objetivo de modernizar o país.
No Rio Grande do Sul surgiu a primeira colônia alemã, a cidade fundada recebeu o nome de São Leopoldo. O aumento da circulação de colonos e a fundação de novas colônias trouxe mudanças significativas para os povoamentos da região. A reação dos Coroados (nome dado aos grupos indígenas pelos colonos alemães e italianos) passa a ser inevitável, pois a colonização avançava e ocupava os territórios habitados por esses indígenas.
As correrias tão narradas por autores do século XIX nada mais eram que respostas à colonização que avançava. Para as narrativas interessava, também, retratar o indígena como animais sanguinolentos, totalmente arredios aos avanços dos brancos. A ideia sempre foi justificar a violência nua e crua que o colonizador passa a organizar em resposta às correrias. Os séculos anteriores (XVI, XVII e XVIII) e agora o século XIX sempre revelaram a enorme vantagem bélica do colonizador que, também, contou com uma guerra biológica a seu favor, com as doenças vindas com o europeu. As doenças acabaram dizimando aldeias inteiras. Os Coroados não conseguiram frear o avanço do colono e foram ano a ano, perdendo o domínio sobre seu grande território tradicional.
Outro evento importante que passa a acontecer no Rio Grande do Sul e que traz consequências para vida dos Coroados é a Revolução Farroupilha ou Guerra dos Farrapos. A análise desse acontecimento importante para história gaúcha, nos permite dizer que o aumento na circulação de tropas imperiais e republicanas ajudou na identificação e melhor conhecimento da região. Os locais de maior circulação dos indígenas Coroados com certeza foram mapeados e registrados, pois é com o fim da guerra em meados de 1845 que se intensifica o debate em torno dos aldeamentos para indígenas na Província.
O período imperial inicia, então, com a guerra e pela catequese. A questão indígena ficou a cargo da 4ª Seção de “Catequese e Civilização” da Secretaria de Estado dos Negócios do Império. O que temos para o período são dois decretos, de números 425 e 426 de 24 de julho de 1845 e a Lei 601 de 1850 que procuram dar destino às terras indígenas. Os decretos vieram para consolidar a figura do “Diretor Geral de Aldeamento”. Anterior a esses decretos tínhamos o de nº 285 de 24 junho de 1843 que autorizava o governo a contratar capuchinhos italianos (padres) e distribuí-los entre as províncias em missões indígenas.
Essa informação vem de encontro ao real interesse dos padres, primeiro do pe. Antônio de Almeida Penteado em 1845 e mais tarde do pe. Bernardo Parés, a partir de 1847. O primeiro acabou desistindo de levar as primeiras luzes do cristianismo ao seio dos Toldos Indígenas. O segundo, Parés estabeleceu conversações com o presidente da província, Conselheiro Manuel Antônio Galvão em meados de 1847, e depois de receber promessas de auxílio, embrenhou-se nos Sertões Riograndenses e depois de passar por Cruz Alta, deslocou-se para Guarita e ali fundou o aldeamento de Guarita. Já em 1849 o incansável missionário fundou a aldeia de Nonoai. Parés ainda realizou esforços para fundar uma terceira missão. Portanto, fundaram-se nos anos de 1848 e 1849 na província, os aldeamentos de Guarita, Nonoai e Campo do Meio.
O que notamos nos próximos anos do império até os anos iniciais da República são essas ações criadas por decretos e leis que delineiam os destinos dos aldeamentos e das vidas dos indígenas. A Lei de Terras de 1850 estimulou o ataque e a total fragmentação dos aldeamentos criados no Rio Grande do Sul. A resistência Kaingang é que fez surgir a criação e demarcação dos 12 Toldos Indígenas de 1910. Esses territórios em sua maioria foram, também, atacados ao longo do século XX e retomados a maioria a partir de 1988.
Danilo Braga Kaingang – Professor de história, geografia e língua Kaingang na Escola Estadual Indígena de Ensino Médio Kanhrãnrãn Fã Luis Oliveira. Graduado em História Licenciatura Plena pela UNIJUÍ (Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul). Mestre e atualmente doutorando em História Social pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
SAIBA MAIS:
FREIRE, Carlos Augusto da Rocha (Org.). Memória do SPI: textos, imagens e documentos sobre o Serviço de Proteção aos Índios (1910-1067). Rio de Janeiro: Museu do Índio-FUNAI, 2011.
MOTTA, Lúcio Tadeu. As Guerras dos Índios Kaingang: A história épica dos índios Kaingang no Paraná (1769-1924). Maringá, EDUEM, 1994.
OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.
Terra dos Índios. Direção: Zelito Viana. Narração: Fernanda Montenegro. Roteiro: Zelito Viana. Montagem: Eduardo Escorel. [S. I.]: Mapa Filmes; Forte Filmes; Kuarup, 1978.
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