Como o espectro da Revolução Haitiana foi neutralizado no momento de fundação do Estado nacional brasileiro
Rafael de Bivar Marquese
“O Haiti é aqui”, diz a canção, para já no verso seguinte nos lembrar que ele não é aqui. O Haiti poderia ter sido aqui quando o Brasil tomou o caminho da independência contra Portugal, diz certa historiografia. Não, não havia possibilidade de o Haiti se repetir por aqui em 1822, eis o que irei argumentar.
O evento que ficou conhecido como a Revolução do Haiti envolveu dois processos distintos, ainda que diretamente inter-relacionados. O primeiro foi a Revolução de Saint-Domingue (1790-1798). Parte indissociável da Revolução Francesa, ela se iniciou, em 1790, como uma guerra civil entre colonos brancos autonomistas e negros e mulatos livres, ao que se somou, em agosto do ano seguinte, uma enorme rebelião escrava na província norte. A partir de 1793, esses dois conflitos se conjugaram a uma guerra imperial, com a invasão da colônia francesa por tropas espanholas e inglesas. Em 1794, como resposta à radicalização dos conflitos coloniais e da própria radicalização política na metrópole, a Convenção Nacional jacobina aboliu a escravidão em todas as possessões francesas. A partir de 1795, Toussaint L'Ouverture, um ex-escravo, passou a comandar inconteste as forças republicanas francesas em Saint-Domingue, expulsando definitivamente os invasores espanhóis e ingleses em 1798.
O segundo processo foi a Guerra de Independência do Haiti (1802-1804), uma resposta direta da população de Saint-Domingue – de suas massas de ex-escravos que conquistaram a abolição em 1794 e de seus antigos negros e mulatos livres – à campanha lançada por Napoleão Bonaparte em 1802 para tomar o comando político local, exterminar as tropas negras, reinstituir a escravidão africana e reabrir o tráfico negreiro transatlântico. Ao término de uma guerra total, em janeiro de 1804 foi proclamada a independência do Haiti, o segundo país independente a surgir nas Américas.
Três foram as condições de possibilidade para que o levante escravo de agosto de 1791 se convertesse na força catalisadora desses dois processos revolucionários. Primeira condição: a demografia escravista ímpar de Saint-Domingue. Em 1790, para cada colono branco havia cerca de 15 escravizados; naquela data, o número de escravos em Saint-Domingue se aproximava do meio milhão – nos oito anos que antecederam a revolta de agosto de 1791, cerca de 230 mil africanos haviam sido desembarcados como escravos na colônia francesa. Segunda condição: a rivalidade política feroz – fundada em um racismo institucionalizado desde a década de 1760 pelo Estado absolutista, e que fora reforçado nos dois primeiros anos da Revolução Francesa – entre colonos brancos autonomistas e uma pujante classe de negros e mulatos livres, muitos dos quais senhores de escravos. Terceira condição: as disputas imperiais seculares no espaço caribenho entre França, Inglaterra e Espanha, que potencializaram enormemente a força revolucionária dos eventos franceses a partir de 1793.
Nenhuma dessas três condições se faziam presentes no momento imediatamente anterior à fundação do Estado nacional brasileiro. Em que pese variações de capitania a capitania do Reino do Brasil em 1820, em nenhuma delas os escravos perfaziam a maioria absoluta da população (ainda que constituíssem a maioria simples em algumas delas). Negros e mulatos livres portavam, na América portuguesa, um histórico de reivindicações de direitos, que por vezes se desdobraram em contestações abertas à ordem colonial, como na Bahia, em 1798, e em Pernambuco, em 1817. No entanto, esses questionamentos não implicaram ações articuladas em torno de uma linguagem política racializada, mesmo que fossem impulsionados em suas origens por exclusões de corte racial. Após 1808, o colonialismo português na América se viu enredado em conflitos imperiais em suas fronteiras sul e norte, sobretudo contra os espanhóis, mas eles se deram bem longe dos centros de poder decisório, notadamente do Rio de Janeiro.
Ou seja, eram nulos, no Brasil de 1820, os riscos de uma eventual ação escrava de rebelião coletiva massiva cruzar-se com uma dinâmica do conflito racial no mundo dos livres e com disputas militares imperiais generalizadas. E no Brasil pós-1821, quando se iniciou a cadeia de eventos de nossa revolução da independência: houve essa possibilidade?
A resposta, novamente, é negativa. A despeito da existência de vozes antiescravistas pontuais nos espaços de opinião pública, a escravidão constituía matéria de relativo consenso social no Brasil. A radicalização política de grupos populares urbanos e os confrontos armados contra tropas portuguesas que marcaram esses anos, assim, não tiveram como se transmutar em ameaça à ordem escravista. Para além desse anteparo, há que se levar em conta igualmente a leitura que os construtores da ordem imperial brasileira efetuaram das experiências revolucionárias atlânticas prévias, dentre as quais o Haiti ocupou papel de destaque. O exemplo mais notável foi o que se deu nas discussões sobre a definição da cidadania travadas nas Cortes de Lisboa, em 1822, e na Assembleia do Rio de Janeiro, em 1823. Nessas sessões, a dinâmica da escravidão no Brasil foi contrastada ao que se passara no Caribe francês, onde a interdição dos direitos de cidadania a negros e mulatos livres servira de combustível à subversão da ordem escravista. Para o Brasil evitar os riscos de uma revolução escrava, mantendo a segurança da escravidão em uma situação de tráfico transatlântico aberto, argumentaram esses deputados, havia que se conceder direitos civis e políticos aos escravos nascidos no Brasil que obtivessem carta de alforria, bem como a seus filhos. Na definição de cidadania inscrita na Constituição brasileira de 1824, e que só seria revista com a nova lei eleitoral de 1881, buscou-se neutralizar o espectro de Saint-Domingue. E com sucesso: o Haiti acabou por não ser aqui.
Rafael de Bivar Marquese é professor da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: marquese@usp.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5566-3579
Saiba mais
GOMES, Flávio. Experiências transatlânticas e significados locais: ideias, temores e narrativas em torno do Haiti no Brasil escravista. Tempo, 2002, v. 7, n. 13, p. 209-246.
MARQUESE, Rafael; PARRON, Tâmis. Revolta escrava e política da escravidão: Brasil e Cuba, 1791-1825. Revista de Indias, 2011, v. LXXI, n. 251, p. 19-52.
MOREL, Marco. A Revolução do Haiti e o Brasil Escravista. O que não deve ser dito. Jundiaí: Paco Editorial, 2017.
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