Sou Márcia Motta. Tenho 61 anos e nasci numa pequena casa da Parada Quarenta, na cidade de São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Era o dia 25 de março, quando vim ao mundo, cerca de quinze minutos antes do nascimento de minha irmã gêmea. Fui criada no bairro do Fonseca, em Niterói, integrante de uma família com poucos recursos. Vivi minha infância com medo de ratazanas, da polícia e dos sequestros de crianças, por conta do famoso caso "Carlinhos".
Integrar uma família ignorante, me fez conviver com familiares estruturalmente racistas. Não à toa, ao contrário de minha irmã, desde cedo fui confundida como uma modelo padrão: uma menina branca, com um par de olhos azuis e considerada bonita e burra o suficiente para aceitar ser objeto de ascensão social da família através do costuramento de casamentos imaginado pelos pais e família alargada. Desconfiada da frase "Este é um país que vai para frente", cresci ouvindo Milton Nascimento, Chico Buarque, Caetano Veloso, Lô Borges, Beto Guedes e o inesquecível Luiz Melodia. Sem muito entender a profundidade das letras de suas músicas, fui aprendendo sobre a vida "para além de meu lugar". Recordo-me ainda dos versos de canções como "Sinal Fechado" e "Cálice", além de me inspirar na personagem de "Meu Mundo e nada mais", de Guilherme Arantes.
Fui a primeira pessoa da família a entrar na universidade. Foram três as tentativas de conseguir uma vaga em uma instituição pública. A maior parte dos meus amigos de infância e juventude não chegaram à Universidade. Alguns já se foram e outros tantos se tornaram vendedores, balconistas ou bancários. Pouco sei sobre eles. Como historiadora, tenho a dimensão do quanto é difícil resgatar os percursos dos pobres, dada a dificuldade de registros. No caso das mulheres, muitas delas casaram-se, tiveram seus filhos e passaram a vida a depender dos recursos de seus donos.
De fato, algumas ascenderam socialmente, já que a beleza da juventude adquire um valor inestimável dentro do mercado dos corpos femininos. A maioria delas, hoje velhas como todas nós, sequer encontraram um sentido para suas existências. Vivem a vida em prestação e continuam burras. Mas, diferentemente dos anos pretéritos, parte delas não sente mais vergonha da ignorância que carregam: acreditam no mito invertido, inventado, indefensável, denominado "Bolsonaro". Elas o acham bonito, tem inveja da Micheque e se vêem como co-partícipes de um mundo onde, para conhecer algo, basta apenas espalhar uma opinião. Sem nada terem aprendido com a série "Malu Mulher", tornaram-se cópias empobrecidas de uma patética Regina Duarte. São elas as "louras burras" de ontem, que agora se sentem superiores. Na manicure semanal, compartilham suas frustrações e manifestam desejos irrealizáveis, ao comentarem a beleza de um Caio Castro - tão belo e tão jovem como seus filhos.
A entrada na Universidade pública é libertadora.
Foi ela que me permitiu ultrapassar a cerca, invadindo o terreno pretensamente ocupado pelos "melhores". A destruição do sistema educacional e das ciências é o caminho mais fácil para sermos uma nação de Reginas, onde umas são bem sucedidas financeiramente e a maioria, contudo, segue imersa na lama do preconceito e da intolerância naturalizados cada vez mais. Na Universidade, ainda tão desigual, aprendemos quase tudo, a começar pela certeza de que nada se sabe. Em minha casa não havia biblioteca e nem perto dela. Nesse ambiente, vi pela primeira vez uma quantidade enorme de livros num único espaço. Muitos de nós saímos de uma realidade pobre, protegidos pelas redes de parentelas, e somos jogados em um mundo mais próximo de Marte do que o planeta em que, de fato, vivemos.
Nunca mais fui feliz como na juventude, mas dei um sentido a uma vida, até então, medíocre. Tornei-me professora universitária e não há nada mais revolucionário do que se sentir uma mestre capaz de ensinar e aprender, apesar de sempre angustiada pelo desejo de espalhar as sementes que colheu naquele lugar. Na universidade - ao menos aquela que conheci -, as certezas desaparecem, as fronteiras se tornam fluídas e a ciência que abraçamos passou a fazer parte de nossas vidas. Passados tantos anos, tornei-me docente da instituição em que me formei, onde, ainda na graduação, acompanhei as discussões sobre a Constituinte, chorei a morte de Chico Mendes e tinha Betinho como ídolo.
Chico e Betinho alargaram minha visão sobre o mundo. Aqui na terra, o mundo era bem mais cruel, violento e desigual do que eu poderia compreender. Na Universidade fui alimentada por mulheres sublimes e tão maravilhosamente distintas: Yedda Linhares, Vania Fróes, Ismênia Martins, Sônia Mendonça. Bebi na fonte da sabedoria de três homens gentis e brilhantes: Leandro Konder, Gerson Moura e Chico Carlos. Foi na universidade que conheci e me tornei amiga de dois grandes e insuperáveis amigos: Renato Pitzer e Théo Lobarinhas, ambos apaixonados pela ciência, pela política e pelo conflito.
Jamais poderia votar num imbecil como o atual presidente. Por causa dele, me vi sozinha, perdendo amigos e parentes que imaginava serem boas pessoas. Angustiada, ameaçada e abalada pelo retrocesso incomensurável que vejo diante dos meus olhos, não quero morrer sem ver novamente a esperança. A Universidade dos anos que me formei me ensinou que estamos aqui para compartilhar experiências, sonhos, lutas e amores. E ela só sobrevive na democracia. Para torná-la menos excludente, mais generosa e mais humana, ela precisa de muitos recursos, mas precisa, também, que a sociedade volte a apostar no seu poder transformador.
Lula, não estarei no Brasil para votar em você. Já escrevi e publiquei as minhas razões, mesmo que você não tenha tido a oportunidade de lê-las. Sofrerei por isso, tenha certeza. Jamais me perdoarei pela minha ausência no dia 30 de outubro. Mas, o meu percurso de vida só adquire sentido quando a vejo através de pessoas como você. Não há personagens sem História e a nossa será sempre vista de baixo, do outro lado da margem, nos arrabaldes da vida.
Márcia Maria Menendes Motta é professora aposentada do Departamento e do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, onde atuou desde 1992.
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