Diana Mendes Machado da Silva
Em 2022, diante do desfile de imagens, discursos e sentimentos de “amor à pátria” em infinitas execuções do hino nacional ou no uso histérico de camisas de cor verde e amarela, foi inevitável se perguntar sobre a matriz dessa comoção: seria ela fruto das comemorações do bicentenário da Independência ou, como a cada quatro anos, da imersão em uma Copa do Mundo de Futebol?
A resposta é complexa e não dispensa uma primeira reflexão sobre a narrativa, ainda hegemônica, de que o surgimento do Brasil enquanto nação seria fruto de eventos palacianos, como a chegada da família real em 1808, a Independência em 1822, a abolição da escravidão enquanto instituição em 1888, a Proclamação da República em 1889 ou mesmo os anos da era Vargas, a partir de 1930.
Muito embora tais eventos tenham produzido vários dos símbolos que ainda hoje acompanham as manifestações de identidade nacional no país, em nenhum deles é possível encontrar a “matéria-prima” que as sustentam. Benedict Anderson afirma que essa matéria não se configura como mero decalque de eventos de natureza político-estatal. Sua matriz é a imaginação, e seu terreno, a cultura. E a cultura, diria Frantz Fanon, escapa à toda simplificação. Ao se movimentar a partir da interação entre variados agentes, em múltiplas temporalidades e espacialidades, ela extrapola os limites de narrativas fixas e estáveis como aquelas construídas em torno de um “passado nacional”.
É justamente nesse ponto que o futebol oferece uma perspectiva para compreender o problema. Pois foi (e segue sendo) um dos poucos fenômenos socioculturais capaz de mobilizar multidões no Brasil. Nascido bretão, ele assume novos contornos por aqui, tornando-se um dos principais meios de comunicação entre grupos sociais diversos e mesmo antagônicos.
Em Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1908), Leonardo Pereira identifica um dos primeiros momentos em que essa comunicação se tornou mais evidente. Foi em 1908, quando o Brasil recebeu, pela primeira vez, um time estrangeiro para a realização de jogos amistosos. As três partidas realizadas no Rio de Janeiro entre o selecionado argentino e a equipe brasileira foram noticiadas na imprensa como uma “ocasião especial”, um dia “santificado”, em que admiradores de variados clubes, cores e extrações sociais torceram em uníssono pelos jogadores brasileiros como “nossos representantes”. Para os cronistas da época, a movimentação em torno das partidas assumiu tom “patriótico”, de “defesa da nação” a ponto de fazer esquecer as diferenças e desigualdades vividas cotidianamente no Rio de Janeiro, então capital federal. Essa comoção compartilhada se ampliaria consideravelmente nos anos seguintes.
O centenário da Independência, por exemplo, foi comemorado em meio à realização do Campeonato Sul-americano de Futebol. Ou vice-versa, para alguns. De todo modo, o importante é saber que os eventos se deram de maneira concomitante e convergente. Tanto que, comentam Drummond, Melo e Santos (2012), jornais e revistas da época como A Cigarra publicaram charges com os seguintes dizeres: “Por que o governo não cria um ministério do Futeból? Não seria mais util que qualquer outro?”. Ou: “– Para ser grande e patriota, tem de correr num campo de futebol!”.
Os textos ilustram o papel assumido pelo esporte nas narrativas de construção e de valorização de uma identidade nacional naquele momento. Diante das inúmeras crises econômicas e institucionais do período, fazia parte do trabalho do governo, da imprensa e das elites procurar por pontos de contato com as experiências populares para a criação de um terreno simbólico e afetivo comum. Tratava-se de uma forma de buscar coesão para prosseguir com os projetos de modernização sem mudança.
O futebol foi, pois, incorporado ao evento de celebração do centenário para que fosse possível se beneficiar de sua popularidade junto à parcela significativa da sociedade. Com essa operação, o evento da Independência e também o da República, foram se tornando mais discerníveis e legítimos para grupos que não os compreendiam, tampouco neles se reconheciam.
Quanto à aproximação entre eventos “cívicos” e experiências populares, não há dúvida de que tenha surtido efeitos, pois o recurso tornou-se regular e seu exemplo mais eloquente é a coincidência, desde 1994, entre Copas do Mundo e eleições presidenciais no Brasil. Os benefícios para ambos os eventos são largamente reconhecidos.
Mas se os usos do futebol feitos pelo Estado, elites e oligarquias revelam sua centralidade na imaginação de uma comunidade nacional, parece necessário delinear também o tipo de “lastro” que o esporte oferece para sustentá-la.
Em nossas pesquisas, investigamos alguns dos conteúdos e sentidos que circularam nas práticas futebolísticas populares sob a hipótese de que o esporte sempre comporta as características específicas daqueles que os praticam. Notamos, primeiramente, que o que surgia na linguagem esportiva do Brasil não era exatamente o que caracterizava o chamado football association inglês. O conjunto de regras abstratas e impessoais criado em meio à experiência do controle e exploração do trabalho pelas indústrias e à construção de práticas para o tempo livre pelos sindicatos e associações de trabalhadores fabris, assumiu formas e conteúdos muito diferentes por aqui.
No Brasil, agremiações e associações populares para a prática do futebol foram surgindo com base em laços familiares ou solidariedades suburbanas criadas, por exemplo, entre grupos negros e de imigrantes. Nelas, circulavam valores mais associados à honra ou à fidelidade a um grupo ou clube do que à isonomia ou à meritocracia individual. Além disso, o modelo mais utilizado para a organização de jogos e torneios de futebol, ao menos em São Paulo, foi aquele dos festivais religiosos em que a vida se organizava em torno das paróquias – e não do cotidiano de distritos operários.
E se pensarmos especificamente nas mulheres, será possível notar que o esporte foi investido dos sentidos de liberdade e de libertação contra opressões de gênero e classe. Pois mesmo com a proibição da prática feminina pelo decreto federal de 1941, elas não deixaram de criar tempos e espaços para se dedicar ao jogo. E em consequência, seguiram promovendo mudanças em dinâmicas familiares e relações de trabalho.
Essas experiências evidenciam que, muito embora cidades como São Paulo e Rio de Janeiro já fossem grandes quando o esporte passa a nelas ser praticado, em verdade apenas começavam a se aburguesar naquele início de século XX. Nesse sentido, o futebol figurou como uma espécie de repositório, em que tais conteúdos foram “protegidos” ou “preservados” – na medida em que isso é possível, ou seja, não sem certa dose de fixação ou de cristalização em face das inevitáveis transformações na vida social. A famosa imagem do “amor à camisa”, por exemplo, a qual recorremos para analisar o caráter ou o comportamento dos jogadores ou de uma equipe, é uma das que condensa um repertório no qual se afirma que nem tudo “o dinheiro pode comprar”, em evidente referência às práticas livres dos valores de mercado.
Mas mesmo quando, na trilha percorrida por Norbert Elias, observa-se o papel modernizador do futebol junto às classes médias e grupos populares, práticas tão contemporâneas e correntes quanto a de ver e ser visto por meio do esporte remetem a temas mais complexos, como a participação negra na sociedade de classes. Sobre a questão, importa mencionar que, após o fim da escravidão, algumas das primeiras fotografias de homens negros foram realizadas em campos de futebol – diferentemente do que aconteceu para boa parte da burguesia, que construiu cenários fictícios em estúdios para retraçar genealogias em uma imitação de costumes aristocráticos.
Para compreender o significado dessas primeiras imagens futebolísticas com personagens negros, basta considerar a diferença entre ser visto através de lentes dedicadas a mostrar modernidade, singularidade e excelência, ser retratado sob a ótica do trabalho compulsório exemplar ou, ainda, como um tipo físico e social a ser criminalizado e perseguido. Com o futebol, uma nova via de representação e visibilidade, de teor positivo, foi aberta à população negra – e isso renovou as possibilidades de ser negro no país.
Essas são apenas algumas das razões pelas quais esse esporte se tornou parte central da construção da identidade nacional brasileira. Além de figurar como um mediador entre experiências por vezes muito díspares, também fez circular, entre grupos populares e estratos médios, princípios modernos como desempenho e mérito. Assim, por meio do futebol foi possível tanto preservar quanto renovar práticas, sentidos e valores que foram e seguem sendo parte substancial das experiências de milhões de pessoas no país.
Diana Mendes Machado da Silva é historiadora, professora na Unifesp e autora de “Futebol de várzea em São Paulo: a Associação Atlética Anhanguera (1928-1940)”. São Paulo: Alameda/Fapesp, 2017. Email: diana.mendes@unifesp.br
Para saber mais
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia; DRUMOND, Maurício; MELO, Victor Andrade de. Celebrando a nação nos gramados: o campeonato sul-americano de futebol de 1922. História: Questões & Debates. Curitiba, v. 57, n. 2, p. 151-174, 2012.
SILVA, Diana Mendes Machado da. Futebol e cultura visual: a construção da figura do craque. Marcos Carneiro de Mendonça e Leônidas da Silva (1910-1942). 2019. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP), São Paulo, 2019.
SILVA, Diana Mendes Machado da. Futebol de várzea em São Paulo: a Associação Atlética Anhanguera (1928-1940). São Paulo: Alameda: Fapesp, 2016.
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