Fernando Atique
Andréa Slemian
Débora Natucci
Luan Vieira
Quem nunca andou pelas ruas de qualquer cidade do mundo e não se perguntou: por que e por quem seus nomes foram escolhidos? Afinal, o que a toponímia de uma cidade, ou de partes dela, revela? Ambas as perguntas são mais expressivas se falamos dos monumentos, reconhecidos como autênticos artefatos que têm por finalidade rememorar alguma pessoa, episódio, comunidade, cultura, entre outros intentos. Eles contam necessariamente uma história. Não apenas uma história do tema e/ou personalidade que se pretende retratar, mas, sobretudo, uma história de sua idealização e concepção, entrelaçadas à criação de um espaço para congraçamento de determinada narrativa sobre o passado. É por isso que podemos dizer que um monumento é, por excelência, um lugar de memória, marcando a cena urbana com significados que vão muito além dos seus artefatos físicos. Os movimentos pela destruição de estátuas que assistimos recentemente em todo o mundo atestam sua força simbólica, bem como as disputas em torno das ressignificações do passado. E, enquanto as representações tridimensionais mais conhecidas, como as estátuas, são lugares de monumentalização, as ruas, viadutos, praças e edifícios são aqueles lugares em que o cotidiano se processa, pois por eles circulamos e vivemos e sobre eles articulamos nossas memórias. Parte desta tarefa memorial de nosso cotidiano se dá por meio das evocações dos nomes que selecionamos em nossas interações sociais.
A memória – ou melhor, as memórias – da Independência não passaram nada incólumes pelas cidades brasileiras. Ao contrário, é muito significativo o número de ocorrências, em ruas e monumentos, de nomes que as evocam em todas as capitais. Um mapeamento desse número deu origem ao projeto “Atlas urbano da Independência: cartografando monumentos e logradouros no Brasil” (independencias-memorias.com.br), por nós iniciado na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), em 2021, como uma forma de pensar seus significados. Em um levantamento de todas as capitais do Brasil atual, obtivemos um número de 502 ocorrências (o que inclui ruas, avenidas, praças, bairros) e 29 monumentos que fazem referência à Independência, seus personagens e datas consagradas. Para realizar essa contabilidade, utilizamos o site Google Maps para encontrá-las, bem como o portal de Código de Endereçamento Postal (CEP) dos Correios, que nos levaram a precisarmos exatamente até as localizações. Com uma concentração muito intensa na região Nordeste, seguida do Sudeste, Norte, Centro-Oeste e Sul, todas as capitais brasileiras dispõem de toponímias que trazem referências à Independência, nem que seja ao menos uma. No gráfico abaixo, pode-se ver a incidência das toponímias da Independência pelos Estados:
Como se vê, a região Nordeste é onde se encontram as maiores ocorrências, com o número de 188, com maior foco na capital de Salvador, com 89. No Sudeste, temos 111 referências, sendo a capital de São Paulo a com maior número de incidências: 44. Na região Norte, foram encontradas 107, sendo Manaus, com 34, o local com maior número. No Centro-Oeste existem 65, e Goiânia lidera, tendo 39. Por fim, a região Sul dispõe de 31 ocorrências, tendo Curitiba a maior parte, com 14. Em relação aos monumentos, foram encontrados 29 no total: 19 na região Sudeste, 7 na Nordeste e, 3 na Norte. É digno de nota que nas capitais das regiões Centro-Oeste e Sul não existam monumentos que evoquem a Independência.
Sobre as referências encontradas, elas vão desde a própria palavra “Independência”, com um total de 98 ocorrências, da expressão “Sete de Setembro”, que é a mais citada, possuindo 106, e “Ipiranga”, com 46, até o “Dois de Julho”, com 29 ocorrências no total e 21 apenas em Salvador, e o “Quinze de Agosto”, com 4 referências, no Pará. Entre os personagens, é significativo que os mais citados em todas as regiões, e com muita diferença em relação aos outros, sejam Dom Pedro I, Leopoldina e José Bonifácio. Este último é o que possui maior número de ocorrências – 57 –, seguido por “D. Pedro”, com 38, e “Leopoldina”, com 29. Mas os nomes da Marquesa de Santos, Dom João VI, Carlota Joaquina, Frei Caneca, Cipriano Barata, Maria Quitéria e outros são igualmente referenciados. Nos monumentos, a diferença é quase a mesma: José Bonifácio possui 6 artefatos em sua homenagem; D. Pedro I, 4, e D. Leopoldina, 1. Os outros 18 monumentos se dividem em referências à Independência, ao Sete de Setembro e ao Dois de Julho, além de museus e casas históricas.
Com esse levantamento foi possível chegar a algumas conclusões em relação às memórias evocadas pela toponímia. A primeira é, sem dúvida, a força de uma memória oficial construída sobre o episódio, que povoou a cidade brasileira de monumentos quando do Centenário da mesma, em 1922, e que foi consolidada no seu Sesquicentenário, em 1972, período da ditadura militar (vivida no Brasil entre os anos 1960 e 1970) – ou seja, da narrativa que trata a Independência como uma história centrada no Centro-Sul e da consagração da tríade de seus principais personagens. A segunda é que, apesar dessa força simbólica, outras histórias também aparecem na toponímia urbana, rasgando seu espaço com outras narrativas que podem ser vistas por cada um de nós em nossas cidades, como por exemplo a toponímia do Frei Caneca, que aparece 4 vezes no Sudeste e 3 no Sul, totalizando 7 por todo o Brasil, não possuindo ocorrências no Nordeste, Norte ou Centro-oeste. Terceiro, e igualmente significativo, é o fato de que nas capitais do Nordeste se encontra o maior número de citações de locais urbanos (ruas, praças, avenidas), enquanto no Sudeste se pode encontrar mais ocorrências de monumentos. O que isso significa? Tomando em conta que o instrumento primordial da consagração da memória é, sem dúvida, o monumento, essa exaltação do passado da Independência foi preferencialmente possível no Sudeste; no Nordeste, marcar o traçado das cidades com nomes vários pode demonstrar uma ação no sentido da penetração subliminar das referências à narrativa oficial pari passu as referências locais que, igualmente, disputam seu espaço.
A celebração tridimensional da Independência em estátuas notadas no Sudeste, longe de garantir um privilégio cultural em detrimento das demais regiões, endossa a compreensão de que uma disputa oficial entre Rio e São Paulo pelo papel de artífices da Independência se tentou fixar. Essa imagem de uma nação forjada no Centro-Sul foi deliberadamente objeto de muitos governos federais, que governaram o país do Rio de Janeiro até a inauguração de Brasília, em 1960.
Essas são apenas algumas questões que poderiam ser levantadas a partir dos dados gerados pelo Atlas, que começa a ser disponibilizado on-line e, por meio de fascículos, cobrirá todas as cidades-capitais brasileiras. Afinal, a história é dinâmica e permanente reinvenção. Mas é a toponímia das cidades um dos observatórios mais privilegiados para se entender a pretensão de estabelecer o passado como eterno e constante presente que, solidificado no asfalto e cimento urbanos, poderia escapar do passar do tempo.
Minibios
Fernando Atique é professor de História, Espaço e Patrimônio Edificado no Departamento de História - EFLCH - Unifesp. É bolsista produtividade em pesquisa nível 2, do CNPq.
Andréa Slemian é professora da História do Brasil no Departamento de História - EFLCH - Unifesp. É bolsista produtividade em pesquisa nível 2, do CNPq.
Luan Vieira é graduando em História - Licenciatura pela UNIFESP. Colaborou de forma voluntária no projeto "Atlas urbano da Independência: cartografando monumentos e logradouros no Brasil"
Débora Natucci é graduanda em História - Bacharelado pela UNIFESP e foi bolsista FAPESP no projeto "Atlas urbano da Independência: cartografando monumentos e logradouros no Brasil", processo nº 2021/14540-3.
Para saber mais:
CORDEIRO, Janaina Martins. A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento. Editora FGV, Rio de Janeiro, 2015, 360 p.
MOTTA, Marly Silva da. A nação faz cem anos: a questão nacional no centenário da independência. Rio de Janeiro: Editora FGV: CPDOC, 1992, 129 p.
VIÑUALES, Rodrigo Gutierréz. Monumento conmemorativo y espacio público en Iberoamerica. Cuadernos Arte Cátedra. 1ª ed, Madrid, 2004
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