Em 5 de agosto de 2023 faleceu em Paris Hélène Carrère d'Encausse, aos 94 anos, a historiadora da Rússia czarista e soviética e a terceira mulher a integrar a Academia francesa, em 1990. Tornou-se sua secretária perpétua em 1999, sucedendo nessa função ao historiador Maurice Druon. Foi deputada europeia entre 1994 e 1999.
Nascida apátrida em Paris em 6 de julho de 1929, Hélène Zourabichvili era filha de imigrantes georgianos que haviam fugido a República da Geórgia em 1921, após a invasão do Exército soviético, e se estabeleceram na França. Seu irmão Nicolas Zourabichvili (1936), é conhecido como compositor clássico e de trilhas sonoras para o cinema. Casou-se em 1952 com o empresário Louis Édouard Carrère d’Encausse (1928). Seu filho Emmanuel Carrère (1957) é um premiado romancista e cenarista francês contemporâneo. Sua terceira filha Marina Carrère d’Encausse (1961) é médica, cronista e apresentadora de rádio e televisão e também romancista. Nathalie (1960), a segunda filha, é advogada.
Criança, Hélène viveu em Bordéus até 1944. Aprendeu a ler, primeiro em francês e depois em russo, familiarizando-se com essas literaturas paralelas desde cedo. Seu pai, Georges, um filósofo formado em economia política que se tornou motorista de táxi antes de tentar a carreira de importador-exportador, levara a família para Bordéus, onde seu domínio de cinco idiomas se mostrou inestimável. No ambiente confuso da guerra e da liberação, em 1944, foi sequestrado e desapareceu.
De volta a Paris com sua mãe, a adolescente foi abrigada na Catedral ortodoxa russa de São Alexandre-Nevsky. Hélène Zourabichvili recebeu uma sólida educação no Liceu Molière e depois no Instituto de Estudos políticos de Paris.
Somente se tornou formalmente francesa, por naturalização, quando atingiu a maioridade (21 anos). Ela atribuía particular importância a esse evento, que imaginava ser a ocasião solene de prestar o juramento à bandeira em cerimônia própria. Ficou frustrada ao lhe explicarem que a nacionalidade já estava reconhecida pelo mero fato de que ela não se opusera à naturalização antes de completar 21 anos. Ela se lembrou desse episódio ao ser designada, em junho de 1987, para uma comissão de ‘sábios’ encarregada de estudar a reforma do código francês de nacionalidade.
Desde o início, Hélène Carrère d'Encausse interessou-se pela Ásia Central, especialmente pelos "Emirados do Uzbequistão, de Alexandre II a Lênin", tema de sua tese de doutorado, orientada pelo orientalista Maxime Rodinson, defendida na Sorbonne em 1963. O trabalho foi publicado com o título Réforme et révolution chez les musulmans de l'empire russe: Bukhara 1867-1924 (Armand Colin, 1966). Para concluir o projeto, Hélène Carrère d'Encausse realizou pesquisa de campo, no início da década de 1960, nessas repúblicas periféricas da URSS e em seus vizinhos imediatos, do Cazaquistão ao Afeganistão, passando por Tashkent, atual capital do Uzbequistão.
Durante essa pesquisa, por causa de suas origens e de seu país de adoção, foi suspeitada de espionagem, sem prejuízo, contudo, de seu trabalho nem de sua análise dos sentimentos nacionais nessa ‘Eurásia’, que continuam pouco estudados. Juntamente com seu trabalho cuidadoso sobre a vida política de meio século da nebulosa soviética - pontuado pela publicação de uma síntese, L'Union soviétique de Lénine à Staline 1917-1953 (éd. Richelieu, 1972), reimpresso em dois volumes e em brochura em 1979 (Lenin: Révolution et Pouvoir; Stalin: l'ordre par la terreur, "Champs" Flammarion) e um ensaio sobre a história imediata que esclarece um plano que era pouco claro para muitos, La Politique soviétique au Moyen-Orient 1955-1975 (Presses de la Fondation nationale des sciences politiques, 1976) - a sovietóloga deixou sua marca com sua obra-prima sobre "a revolta das nações na URSS", subtítulo do livro L'Empire éclaté (Flammarion, 1978), uma formulação que tem um ar de profecia quando se acompanhou, cerca de dez anos depois, a gradual dissolução da URSS e o renascimento dos nacionalismos centrífugos do leste Europeu e do Cáucaso.
Aclamado pela crítica (Prix Aujourd'hui 1978), o sucesso acadêmico e comercial desse livro foi tão inesperado quanto deslumbrante. Embora o pivô do desmembramento da URSS não tenha sido ensejado principalmente pela pressão do aumento demográfico das repúblicas muçulmanas asiáticas, como a autora sustentara então, mas sim pelo núcleo desagregador iniciado com a contestação política na Polônia do sindicato Solidarnosc, a ousadia da tese e a clareza do impacto causado pela expressão valeram a Hélène Carrère d'Encausse um espaço permanente no cenário da mídia.
Henri Troyat (1911-2007), romancista de origem russa, nos anos 1980 o membro mais jovem da Academia francesa, sonhava em atrair a sovietóloga e a incentivou a se candidatar. O ritmo constante dos ensaios de Hélène Carrère d’Encausse contribuiu para bem viabilizar a candidatura: Le Pouvoir confisqué: gouvernants et gouvernés en URSS (1980), Le Grand Frère: l'Union soviétique et l'Europe soviétisée (1983), Ni guerre ni paix: le nouvel Empire soviétique ou du bon usage de la détente (1986) ou Le Grand Défi: Bolcheviks et nations 1917-1930 (1987), todos publicados pela editora Flammarion, sem esquecer a análise menos conhecida, mas esclarecedora, de um momento crucial: Khrushchev, 1956: la déstalinisation commence, publicada pela editora Complexe ("La mémoire du siècle", 1986) e reimpressa vinte anos depois em formato ampliado sob o título La Deuxième mort de Staline (Complexe, 2006).
Uma menção especial deve ser feita à esclarecedora síntese Le Malheur russe: essai sur le meurtre politique (Fayard, 1988) que, apesar de passar rapidamente por certos períodos da Idade Média, cobre mais de mil anos de poder sanguinário. A editora Fayard abriu um ciclo de biografias dos soberanos russos, que a sovietóloga, agora especialista nos séculos tsaristas, lidera, seguindo os passos de seu "padrinho" acadêmico Henri Troyat, de Nicolau II (1996) a Catarina II (2002) e Alexandre II (2008), antes de concluir com Les Romanovs. Une dynastie sous le règne du sang (2013). Historiadora de grande erudição, escreve com um estilo elegante, denso e, ao mesmo tempo, leve. Suas biografias são um agudo diagnóstico e uma ampla análise não apenas do biografado, mas igualmente de seus tempos, contextos, experiências e legados.
Suas sínteses de largo alcance e impressionante pertinência, como no L’empire d’Eurasie (Le Livre de Poche, 2008) que nos guia numa viagem empolgante desde o século 16 até nossos dias, faz pensar no largo traço, culto e bem alinhavado, das obras de outro monumento do século 20, Eric Hobsbawm.
Hélène Carrère d'Encausse é uma mulher com conhecimento e autoridade, profundamente identificada com os costumes de uma cultura nacional que adotou, sem jamais renunciar a suas raízes. Sem fraquezas nem hesitações, tampouco asperezas ou imposições sempre sustentando argumentativamente suas análises e interpretações.
Estevão de Rezende Martins
Universidade de Brasília
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