Durante as independências dos países americanos agentes secretos foram extremamente comuns no dia a dia das sociedades. Seu objetivo? Reunir informações que permitissem o sucesso dos projetos políticos nacionais.
Adriano Comissoli
Nas primeiras décadas do século XIX, houve um tempo de incertezas, a América do Sul era palco de diversos conflitos políticos e militares, que obrigavam os encarregados do governo a tomar decisões rápidas sob grande pressão. Havia a luta entre espanhóis e portugueses, herdeira de disputas coloniais por território, cuja manifestação mais intensa acontecia no extremo meridional do continente, onde o Rio Grande de São Pedro (atual Rio Grande do Sul) português confrontava a Banda Oriental (atual Uruguai) espanhola. Embora estas tensões não tenham se resolvido, novos desafios se iniciaram; a partir de 1810, os espanhóis moradores de diversas cidades americanas romperam com a Espanha, pegando em armas pela emancipação. Algumas décadas mais tarde, seriam as tropas favoráveis à independência do Brasil que enfrentariam as leais a Portugal. Porém, as cidades hispano-americanas também lutavam umas contra às outras, mostrando que não havia consenso sobre qual a extensão dos territórios libertados e quais cidades seriam os novos centros políticos. Finalmente, quando as novas nações começaram a despontar independentes, também dirigiram seus planos expansionistas sobre os vizinhos. Do ponto de vista dos contemporâneos, era uma situação de difícil explicação.
Para enfrentar a turbulência e incerteza daquele tempo, os portugueses, e mais tarde os brasileiros, necessitavam estar bem informados. No Rio de Janeiro, os responsáveis pelo governo precisavam de informações para analisar o cenário e tomar as decisões mais seguras, se os relatos chegassem de várias fontes e com bom grau de veracidade, melhor ainda. Para obter informações e orientar suas decisões políticas e militares, os portugueses – assim como os demais europeus – utilizaram com muita frequência espiões, agentes infiltrados e informantes, com o objetivo de acompanhar as movimentações militares dos seus rivais, dentre eles os espanhóis das várias fronteiras com o Brasil, como no Rio da Prata, na região amazônica e junto ao Mato Grosso. Alguns agentes recebiam missões especiais, como quando ainda no século XVIII, saíram da cidade de Belém para Caiena (atual Guiana Francesa) alguns enviados com ordens de roubar e contrabandear plantas do jardim botânico, o que permitiria desenvolver novas culturas agrícolas; do Mato Grosso, no mesmo século, outros agentes anônimos procuraram estabelecer boas relações com espanhóis da província de Maynas, com o objetivo de criar rotas de contrabando. E não se tratou de um simples crime, pois as ordens foram expedidas pelo Marquês de Pombal, secretário de Estado do rei José I entre 1750 e 1777, com o objetivo de utilizar o comércio ilegal para drenar a riqueza dos vizinhos em direção a Portugal.
A espionagem foi intensa nas zonas fronteiriças. Do Rio Grande de São Pedro saíam olheiros e espiões com o objetivo de observar as movimentações militares em Montevidéu nas primeiras décadas do século XIX. Muitos eram os comerciantes que tinham negócios na cidade, pois sua comunidade comercial portuguesa era expressiva, portanto, como a entrada e saída de portugueses era comum, os oficiais militares recrutavam os comerciantes para ficarem atentos ao que acontecia na área espanhola. Os agentes eram homens comuns: comerciantes, padres, soldados e até mesmo contrabandistas, não era rara a utilização de ex-escravos ou indígenas. Era mais fácil empregar as pessoas que já conheciam a região e as que nela viviam do que enviar desconhecidos e recém-chegados. A espionagem buscava utilizar as relações de confiança e os contatos que já existiam entre os habitantes locais. Tratava-se de uma ação discreta mais do que secreta.
A partir de 1808, devido à transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, o príncipe regente Dom João mostrou-se muito preocupado com a ação de espiões. Franceses que estivessem na cidade eram detidos, interrogados e até presos, mesmo que já fossem habitantes há alguns anos, pois temia-se que trabalhassem para o imperador francês Napoleão Bonaparte. Os espanhóis também eram vistos com desconfiança, especialmente se vinham de Buenos Aires, que lutava por sua independência, já que receava-se que fossem agentes destinados a espalhar ideias revolucionárias. Muitos estrangeiros tinham sua entrada negada na cidade do Rio de Janeiro ou eram expulsos para locais com menor peso político, como São Paulo e a ilha de Santa Catarina, como medida de segurança.
Quando a independência do Brasil começou a mostrar-se uma possibilidade, a partir de 1821, Dom Pedro e seus apoiadores também utilizaram agentes secretos para se manter informados. No ano seguinte, de Buenos Aires, Antônio Manuel Correia da Câmara escrevia cartas e relatórios sobre a disposição dos vizinhos e seus planos de possíveis avanços militares sobre o território brasileiro. Algumas dessas cartas eram redigidas em cifra, a fim de impedir que pudessem ser interpretadas, sem os códigos corretos, as mensagens eram apenas letras e números embaralhados. O governo do Brasil independente também procurou atrair simpatizantes em Montevidéu e Buenos Aires que fornecessem informação de modo consciente ou inconsciente, iludidos por falsos amigos que os usavam como fontes.
Há muito a ser desvendado sobre a espionagem e diplomacia do Brasil durante a independência e nos anos imediatos. Certamente o que vier a ser revelado não terá a emoção das aventuras que acompanhamos no cinema e na literatura, pois há indicações de que eram ações bastante discretas, simples e cotidianas. Os relatos que encontramos em cartas e ofícios são bastante burocráticos, demonstrando que a busca por informações que pudessem embasar planos políticos foi algo comum para a sociedade do passado. O segredo e o disfarce eram instrumentos bastante usuais do governo e demonstram ser um dos alicerces pelos quais a política internacional foi trabalhada. Nesse sentido, devemos nos animar por viver numa sociedade mais aberta à informação e que não tolera o sigilo das ações governamentais.
Adriano Comissoli é professor do departamento de história da Universidade Federal De Santa Maria e autor da tese “A serviço de sua majestade: administração, elite e poderes no extremo meridional brasileiro (1808c.-1831c.)”. E-mail: adriano.comissoli@ufsm.br https://orcid.org/0000-0001-5957-8518
Saiba mais
BASTOS, Carlos Augusto. No limiar dos Impérios: a fronteira entre a Capitania do Rio Negro e a Província de Maynas: projetos, circulações e experiências (c. 1780-c. 1820). São Paulo: Hucitec, 2017.
COMISSOLI, Adriano. Soberania em território alheio: comandantes e espiões ibéricos nas fronteiras da América, séculos XVIII e XIX. Almanack, Guarulhos, n. 27, 2021. DOI: https://doi.org/10.1590/2236-463327ed00421
PIMENTA, João Paulo. A independência do Brasil e a experiência hispano-americana (1808-1822). São Paulo: Hucitec, 2015.
SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: Hucitec, 2006.