Eduardo Wright Cardoso
Entusiasmado com o que considerava ser um acontecimento único e exemplar, nosso artesão, carpinteiro de formação, reúne seus instrumentos para, nas suas próprias palavras, “erguer” um “monumento” à Independência do Brasil. Depois de quase cinco anos de dedicação, a primeira parte da obra é apresentada em 1847. A recepção inicial do público, contudo, deixa a desejar. As críticas e a indiferença o fazem vacilar. Recebe também, é verdade, elogios de amigos e admiradores. Não sem hesitar, o jovem artesão retoma o trabalho e, após mais alguns anos, o dá por concluído em 1855. Ainda que pouco conhecida, sua obra subsiste até hoje. Para conhecê-la não é necessário visitar algum Museu ou Arquivo; bastam alguns cliques. Isso porque, para erguer o monumento dedicado a um dos principais acontecimentos da história política brasileira, nosso carpinteiro não se valeu de um único prego e muito menos de um martelo. Como era versado também nas letras, ele optou por erigir seu monumento utilizando rimas e estrofes:
“Meu canto, onde só fala a natureza;/ Presta ouvidos à Lira Fluminense,/ Ajuda-me a vencer tamanha empresa!/ Ah! que se o vate tanto esforço vence,/ Maior honra não quer, maior grandeza!/ Pois tenho o prêmio na elevada glória/ De haver cantado ao mundo a Pátria História!” (Canto I, XXIX).
Esses versos são parte do poema épico A Independência do Brasil, de Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa. Afrodescendente nascido em uma família humilde de Cabo Frio, no ano de 1812, nosso artesão precisou aprender ofícios técnicos para garantir seu sustento, como a carpintaria e a tipografia, mas jamais abandonou o gosto pela literatura. Ao longo de sua vida que se estendeu até 1861, foi autor de diversas obras, escritas em diferentes gêneros literários: além da poesia, Teixeira e Sousa publicou, por exemplo, tragédias, como Cornélia (1840) e O cavaleiro teutônico (1855) e romances, como Gonzaga ou A conjuração de Tiradentes (1848-1851) e O filho do pescador (1843), este considerado o primeiro romance brasileiro.
A Independência do Brasil, contudo, talvez seja sua produção mais audaciosa. Afinal, o monumento é grandioso, não há dúvidas. A obra conta com 12 cantos e mais de 12 mil versos. É mais extensa, portanto, do que outras epopeias, como a Eneida, de Virgílio, a Divina Comédia, de Dante, ou Os Lusíadas, de Camões, obras que Teixeira e Sousa, aliás, faz questão de mencionar e que lhe serviram de inspiração. Em comum, os poemas épicos ou as epopeias, gênero literário existente desde a Antiguidade, costumam narrar, em versos, eventos considerados heroicos ou grandiosos, ações que, como o processo de Independência, deveriam ser imortalizadas. Exatamente por isso nosso vate, ou poeta, se vale da “régua” da épica para cantar o drama nacional.
Mas, como na carpintaria, algumas regras precisam ser respeitadas – do contrário, as bases da obra podem revelar fissuras ou fragilidades. É isso o que sugere Antônio Gonçalves Dias (1823-1864), poeta e escritor que, sob pseudônimo e em diversos artigos no jornal Correio da Tarde, em 1848, condena asperamente o poema do nosso artesão. Para o crítico, a obra é cansativa, enfadonha e excessivamente longa, além de equivocada na ideia e na execução. No fim, a principal reprimenda diz respeito à opção de Teixeira e Sousa por cantar um acontecimento moderno, como a Independência, utilizando um gênero literário antigo. Segundo o crítico, a épica estaria, no século XIX, em descompasso com o presente. Isso não impediu que, alguns anos depois, o próprio Gonçalves Dias publicasse uma obra com traços épicos, poema que receberia o título de I-Juca-Pirama (1851).
Mas Teixeira e Sousa não estava só. Amigos e admiradores saíram em defesa de sua obra. É nesse momento que um ainda jovem escritor, de nome Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), começa a escrever seus primeiros textos. Em um deles, dedicado ao nosso artesão, é possível ler: “Toma a lira de novo, e um canto vibra/ E depois ouvirás a nossa terra/ Orgulhosa dizer: – Grécia, emudece,/ Dos vates berço, abrilhantado surge/ O Gênio adormecido!”. Os versos de 1855 são publicados na Marmota Fluminense, importante periódico do período, administrado pelo escritor e jornalista Francisco de Paula Brito (1809-1861). Foi na tipografia de Paula Brito, aliás, que Teixeira e Sousa publicou muitos dos seus textos. Assim, é possível sugerir que o estímulo de Machado de Assis expressava tanto um sincero entusiasmo pelo “gênio adormecido” quanto uma propaganda em defesa da segunda parte do monumento…
Afinal, o que conta nosso poeta sobre a Independência do Brasil? Para narrar a “Pátria História”, Teixeira e Sousa reproduz discursos políticos, descreve debates em assembleias e na imprensa do período, reconstrói episódios da luta entre portugueses e brasileiros, reconta mitos e motivos indígenas, acompanha anjos na descrição física e geográfica da América, registra, enfim, o que considera ser o triunfo da Liberdade e do regime imperial. A iniciativa chama atenção não apenas pelo acúmulo de cenas e pela extensão, mas também pela rapidez com a qual foi empreendida: enquanto os sócios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – instituição fundada em 1838 para narrar a história da nação – debatiam sobre a possibilidade da escrita da história contemporânea, nosso artesão decide tomar a pena e narrar, poucos anos depois do evento de 1822, a história da Independência. Optou, assim, não por um livro de história, mas por uma obra poética: a história em cantos.
Passados mais de 150 anos, a obra do nosso artesão costuma atualmente ser mencionada em poucas linhas ou apenas nos rodapés das páginas de história e da literatura. O poema é, contudo, expressivo das possibilidades e dos limites de ascensão social e do reconhecimento do autor por meio das letras tanto ontem, quanto hoje. As críticas e elogios que suscitou permitem compreender um pouco mais da dinâmica política e econômica em voga. Além disso, o monumento à Independência evidencia as alternativas para registrar o tempo e contar a história no século XIX, pois, como sugere o poeta: “Para o futuro só canto o passado!” (Canto XII, IX). Mesmo enaltecendo o regime imperial, Teixeira e Sousa não deixava de criticar o tratamento oferecido aos indígenas nas Américas e se engajou diretamente nos movimentos de extinção do tráfico e abolição da escravatura. Deixou assim um monumento em papel, uma história contada em versos e cantos sobre o Império do Brasil, mas também sobre si mesmo.
Eduardo Wright Cardoso é professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e autor de A cor local e a escrita da história no século XIX: o uso da retórica pictórica na historiografia nacional (Editora Fi, 2019). E-mail: edu.wright@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6932-1000
Saiba mais
CASTRO, Sheila Rocha de. Representações da Independência na literatura brasileira, séculos XIX-XXI. 2019. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2019.
MACHADO DE ASSIS. Obra completa: volume 3 – Conto, Poesia, Teatro, Miscelânia, Correspondência. São Paulo: Editora Nova Aguilar, 2015.
TEIXEIRA, Ivan (org.). Épicos: Prosopopeia: O Uraguai: Caramuru: Vila Rica: A confederação dos Tamoios: I-Juca Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008.
TEIXEIRA E SOUSA, Antônio Gonçalves. A Independência do Brasil: poema épico em XII cantos. Rio de Janeiro: Tipografia de Francisco de Paula Brito, t. I (1847) e II (1855). Disponível em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=178472. Acesso em: 15 jun. 2022.
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