“Dizem os negociantes da Praça desta Corte do Rio de Janeiro, que eles se veem na mais dura consternação com a perda total no giro de seu comércio porquanto os ingleses têm obrado no comércio de tal modo que os suplicantes têm muito fixados suas casas, e lojas de fazenda […]”. A citação de um manifesto dos negociantes brasileiros e portugueses da Praça do Comércio do Rio de Janeiro, de data não mencionada, mas posterior à chegada da Corte no Rio de Janeiro, em 1808, reforça a visão muito enfatizada pelos livros didáticos de História do Brasil. A questão que surge é a seguinte: ficou o Brasil dependente e subordinado aos ingleses com a Independência? O Brasil substituiu Portugal pela Inglaterra, se tornando uma colônia do imperialismo inglês?
Gilberto Freyre, no livro Os Ingleses no Brasil, publicado em 1948, destacou a importância da presença e da modernidade dos ingleses no país. Embora destacasse a presença cultural inglesa no cotidiano brasileiro, o livro de Freyre corroborou com a tese da preeminência inglesa no Brasil, proposta por Alan K. Manchester (1933). Segundo Manchester, com a abertura dos portos (1808), os tratados de Comércio e Navegação e Aliança e Amizade (1810) e a Independência do Brasil (1822), essa última com a contração do empréstimo com os ingleses para o reconhecimento da independência por parte de Portugal, os ingleses hegemonizaram as relações econômicas e políticas do Brasil.
John Luccock (1770-1826), negociante e viajante inglês, escreveu um relato em 1820 sobre a sua estadia no Rio de Janeiro e a sua importância para o comércio inglês. Luccock ressaltou, entre outras coisas, a presença inglesa no Rio de Janeiro, o impacto da chegada da Corte ao Rio (1808) e a centralidade do Rio de Janeiro no comércio interno com Minas Gerais, e no Atlântico Sul, com as suas ligações comerciais com a costa norte Fluminense (até o Espírito Santo), o Sul Brasileiro (até o porto do Rio Grande no Rio Grande de São Pedro do Sul) e o Rio da Prata.
Analisando o comércio exportador e importador brasileiro, não existiu dúvidas da tendência dos ingleses de controlarem as importações de certas mercadorias, como as das “fazendas secas”, ou seja, de fios e tecidos de algodão, lã e linho, oriundos da indústria têxtil revolucionária inglesa, como também das exportações brasileiras de açúcar, café e outras commodities oitocentistas. Nesse comércio de “longo curso”, destacaram-se firmas como Francis Le Breton & Co., Carruthers & Co., Phipps Brothers & Co., Edward Johnston & Co., muitas formadas ainda no período joanino (1808-1821), outras do I Reinado (1822-1831) em diante. É importante ressaltar a presença de outras firmas e negociantes estrangeiros como norte-americanos, hamburgueses e portugueses nesse comércio, tais como Maxwell, Wright & Co., James Birckhead, Schroeder & Co. e outras.
Porém, quando analisamos outras atividades comerciais de grande lucratividade, como o comércio de escravos com a África, os ingleses não participaram diretamente, e sim de forma indireta, se beneficiando mesmo com toda proibição oficial por parte do governo britânico. O que também vale para o comércio da cabotagem costeira brasileira, que só foi liberada para os estrangeiros na década de 1860.
Aliás, sobre o comércio de escravos africanos, importante ressaltar que o governo britânico, desde o período joanino no Rio de Janeiro, pressionou para acabar com essa atividade. Desde os tratados de 1810, e principalmente após as guerras napoleônicas, com o tratado de 1815 e a Convenção de 1817, celebrados entre o príncipe e, depois, rei D. João VI com o monarca britânico, a Inglaterra pressionou para acabar com o infame comércio.
Mas, a necessidade fiscal do Reino de Portugal com sede no Rio de Janeiro, como o imposto de meia siza sobre o comércio de escravos (imposto arrecadado na razão de quarenta mil réis por cada escravo), a força política e econômica dos negociantes escravistas brasileiros e portugueses, particularmente do Centro-Sul do Brasil, e a expansão das lavouras açucareira e cafeeira no Vale do Rio Paraíba (do alto Paraíba em São Paulo até o Baixo Paraíba em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro) e do abastecimento em Minas Gerais, necessitando cada vez mais de trabalho escravo, fez com que o comércio de escravos ficasse proibido somente acima da linha do equador. Tal determinação prejudicou o comércio na costa ocidental africana, região preferencial de atuação dos comerciantes de escravos baianos e pernambucanos. A costa do Congo-Angola e oriental africana ficaram à mercê dos negociantes da Praça do Rio de Janeiro, como o negociante e senhor de engenho de Ubá, em Vassouras (RJ), João Rodrigues Pereira de Almeida (1774-1830) e outros.
Face ao poder político e econômico envolvendo os negociantes, a “nobreza da terra” (classe de proprietários de terras e de escravos não tituladas no período colonial) e a burocracia da Corte no Rio de Janeiro, podemos compreender a relutância em aceitar a pressão inglesa contra o comércio de escravos. Com a independência do Brasil e a necessidade do reconhecimento por parte de Portugal, a Inglaterra viu renascer a possibilidade de acabar com o infame comércio brasileiro. Com as finanças em baixa com a Guerra da Independência (1821-1824), somado à retirada dos recursos do tesouro com o retorno de D. João VI e da corte portuguesa para Portugal (1821), D. Pedro I teve que recorrer à Inglaterra para financiar a dívida do reconhecimento de Portugal e de toda a Europa.
O “empréstimo português” no valor de 3,7 milhões de libras esterlinas marcou a origem da dívida pública externa do Brasil e para muitos a dependência financeira do Brasil com a Inglaterra ao longo do século XIX. Mas, mesmo sendo credor, a Inglaterra não conseguiu se impor politicamente, pois o Brasil, mesmo com a ilegalidade do comércio de escravos, com a Lei de 1831 (A Lei Feijó, de 7 de novembro de 1831), conhecida erroneamente como a “Lei para Inglês ver”, somente em 1850 pôs fim ao comércio transatlântico de escravos (A Lei Eusébio de Queirós, Lei nº 581, de 4 de setembro de 1850). Além disto, em 1862, em virtude do comércio ilegal de escravos, o Brasil rompeu diplomaticamente com a Inglaterra, com a Questão Christie. A retomada das relações viria durante a Guerra da Tríplice Aliança e longe de achar que o Brasil era cúmplice da Inglaterra contra o Paraguai. Mas, essa foi outra História.
Retornando as questões do texto, não é correta a ideia de que o Brasil fosse subordinado e dependente dos ingleses ou que estivesse sob um imperialismo inglês. É necessário discutir e analisar melhor as relações entre os brasileiros e os ingleses no Brasil, suas relações com os respectivos governos e a diplomacia inglesa.
Carlos Gabriel Guimarães é professor do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense e autor do livro A presença inglesa nas Finanças e no Comércio no Brasil Imperial: os casos da Sociedade Bancária Mauá, MacGregor & Co. (1854-1866) e da
firma inglesa Samuel Phillips & Co. (1808-1840). (Editora Alameda, 2012).
ARRUDA, José Jobson de Andrade Arruda. Uma Colônia entre dois Impérios: A Abertura dos Portos brasileiros, 1800-1808. Bauru, SP: EDUSC, 2008.
BETHELL, Leslie. A abolição do comércio brasileiro de escravos: A Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do comércio de escravos, 1807-1869. Tradução de Luís P. A. Souto Maior. Brasília: Senado Federal, 2002.
FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil. Aspectos da influência britânica sobre a vida, a paisagem e a cultura do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000 [publicação original 1948].
LUCCOK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil (1808-1818). Tradução de Milton da Silva Rodrigues e apresentação de Mário Guimarães Ferri. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975 [publicação original em 1820]
MANCHESTER, Alan K. Preeminência inglesa no Brasil. Tradução de Janaína Amado. São Paulo: Brasiliense, 1973 [publicação original em 1933].
Comments