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Foto do escritorMarcus J. M. de Carvalho

1822 – HAVIA ALTERNATIVAS?

A Revolução de 1817 marcou muito os anos seguintes da Independência no Nordeste, ao propor uma inversão da ordem absolutista no Reino Unido


Marcus J. M. de Carvalho


A história não é linear nem simples. Sempre há alternativas. Claro que as coisas aconteceram de uma determinada maneira, e não de outra, e somos o resultado da forma como se encaminharam esses processos. A vantagem da História, essa tentativa de conhecer o passado o melhor possível através de métodos científicos, é que observamos o tempo pretérito da perspectiva do presente. Isso significa que sabemos quais alternativas foram vencedoras, quais os caminhos tomados pelos processos históricos, pois estamos no futuro da época estudada. Já as pessoas que vivenciaram aquele passado apenas escolhiam, quando podiam, entre essas alternativas.


É a mesma coisa hoje em dia. Neste momento exato, vivemos o nosso cotidiano e até imaginamos o futuro. Mas, por mais instrumentos de análise que tenhamos, o máximo que podemos fazer é imaginar o nosso futuro. Ele ainda nos é intangível. A única certeza é que, neste aqui e agora, existem várias possibilidades abertas e até uma gota ao menos do imponderável, do acaso, de processos sub-reptícios que, de repente, explodem em acontecimentos inesperados. Dentre as alternativas em nosso presente, acreditamos e gostamos mais de umas, menos de outras. Escolhemos, quando podemos, nos engajar em torno de algumas dessas ideias e propostas. Mas só no futuro se saberá o que nos reservaram as nossas possibilidades concretas atuais. Só então se poderá aferir o quanto ganhamos ou perdemos como indivíduos e como nação. Ir além disso é imaginação religiosa ou conversa de botequim.


Vivemos no futuro dos protagonistas da Independência. Sabemos um pouco mais do que eles sabiam sobre as consequências dos caminhos tomados pela história e o que veio depois. Mas havia alternativas. Houve muitas propostas, disputas e lutas. Muita gente engajada nisso e naquilo. O resultado final foi a vitória de uma monarquia centralizada no Rio de Janeiro e profundamente autoritária, cuja constituição concedia ao imperador o poder de dissolver a câmara sempre que assim o desejasse, escolher os senadores entre os mais votados nas listas nas províncias, escolher e nomear os presidentes de província, o ministério e, direta ou indiretamente, todo o aparato judiciário, e até os padres que iriam pregar nas inúmeras paróquias. Por meio dessas prerrogativas constitucionais do chamado “poder moderador” (e das chaves do erário), os ministérios alimentavam uma imensa malha clientelar que descia pelos canais do poder até as localidades, de tal forma que as eleições eram sempre ganhas pela situação.


Alicerçando todo esse pesado castelo estava a escravidão, reforçada depois de 1822.


Poderia ter sido diferente?


Poderia.


Em todas as províncias havia propostas republicanas ou mesmo monárquicas, mas menos centralizadoras, mais inclusivas e com representação mais ampla. O próprio José Bonifácio, que articulou um grande acordo político em torno do príncipe regente, não esperava o golpe do já imperador Pedro I, fechando a nossa primeira assembleia constituinte e impondo (ou “outorgando”, se o leitor preferir um velho eufemismo) uma constituição que lhe dava tão amplos poderes. Uma constituição que em nada atendia o desejo de Bonifácio, o mesmo dos revolucionários de 1817, de extinguir, mesmo que lenta e gradualmente, a escravidão.


Naqueles anos de tantas possibilidades, havia muitos caminhos possíveis. Não éramos mais colônia e sim Reino Unido desde 1815, e o rei escolhera morar no Rio de Janeiro, e não em Lisboa, para onde já poderia ter voltado. Até permanecermos Reino Unido não era uma proposta de todo utópica. Quando a Revolução do Porto estourou, em 1820, em um primeiro momento os revolucionários lusitanos tomaram várias medidas muito simpáticas para as províncias do Reino Unido. Uma delas teve repercussões quase que imediatas: a demissão de todos os governadores régios nomeados por Dom João VI, que deveriam ser substituídos por juntas de governo eleitas pelas câmaras das províncias. Caberia, portanto, às elites locais escolher seus governantes pelo voto, e não ao rei e aos ministros reinóis. Por mais excludente que tenham sido essas eleições, não deixava de ser um governo local, escolhido por centenas de pessoas que residiam nas províncias, onde tinham seus negócios e riqueza. Dali em diante, tudo poderia acontecer.


Uma outra medida teve imenso impacto nas “províncias do norte”: a anistia dos remanescentes de 1817 ainda presos ou escondidos. Esses anistiados haviam participado do movimento republicano que tomou o poder por 74 dias em Pernambuco e tentou rebelar outras províncias da América portuguesa. Os revolucionários do Porto também convocaram eleições para uma assembleia constituinte em Portugal. É difícil imaginar o entusiasmo, não apenas dos liberais radicais – já de volta à arena política –, mas de todos que defendiam o constitucionalismo contra o absolutismo. Nunca é pouco repetir que, naquele primeiro momento, o absolutismo não estava em Lisboa, mas no Rio de Janeiro, onde o príncipe regente não escondia de ninguém sua insatisfação com a pressão das cortes constituintes sobre o seu pai, forçado a jurar uma constituição. Nunca é pouco lembrar que foi do Rio de Janeiro que vieram as ordens para a brutal repressão ao movimento de 1817. Até padres foram condenados à morte e executados pelos agentes da coroa, algo inédito até então na América portuguesa. Em 1820, o ex-governador deposto pelos rebeldes de 1817, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, estava no Rio de Janeiro e seria nomeado ministro da Justiça depois da Independência.


É sintomático que a primeira junta de governo eleita em Pernambuco, depois da renúncia do governador régio, Luís do Rego, em 1821, tenha sido presidida por um veterano de 1817: Gervásio Pires Ferreira, que foi da cadeia à cadeira de presidente em poucos meses. Não era a toa à sua desconfiança em relação à corte no Rio de Janeiro. Com a volta de Dom João a Portugal, José Bonifácio buscou quebrar essas desconfianças, articulando a união das províncias em torno da ideia de conseguir das cortes que o Poder Executivo, no Brasil, ficasse com o príncipe regente Pedro. Em Pernambuco, essa proposta ficou conhecida como a “causa do Rio de Janeiro”. Ela tinha adeptos no Nordeste, pois a classe proprietária temia a repetição da radicalidade de 1817 – o que não seria bom para seus negócios, inclusive para o tráfico de escravizados, dependente de conexões com a África, principalmente com Angola.


A junta presidida por Gervásio Pires ganhara o controle das rendas provinciais em 1821. Eram muitas as queixas quanto ao envio desses recursos para a corte, tão perdulária como em 1817, quando os revolucionários assumiram o poder por 74 dias. O primeiro manifesto de 1817, o preciso (no sentido francês de prècis, ou seja, “resumo”) já chamava o movimento de “revolução” e até na imagética recusava o absolutismo. Presta-se muita atenção à bela bandeira revolucionária, que destaca o sol, iluminando e acalentando a todos igualmente, mas pouco se fala da figura abaixo do texto. Ora, os rebeldes poderiam ter escolhido uma folha em branco para imprimir seu primeiro e definitivo manifesto, mas escolheram um papel timbrado com as armas da coroa imperial, indicando o valor do imposto do selo – mais uma renda para a corte no Rio de Janeiro. Só que o símbolo foi colocado de ponta cabeça, resumindo em imagem a inversão da ordem absolutista e da própria monarquia.


Em 1822, Gervásio Pires entendia que não era mais possível tamanha radicalidade, mas é fato que nem obedecia totalmente as ordens das cortes em Portugal – tanto que não deixou que novas tropas desembarcassem na província – nem cedia aos acenos dos defensores da tal “causa do Rio de Janeiro”. Os eventos, todavia, andaram muito rápido. Logo o príncipe regente assumia o controle dos oficiais e tropas de primeira linha nas províncias. 1817 foi um marco na história da independência, mas nunca é pouco repetir que a classe proprietária, que em boa parte apoiou o movimento no começo, rapidamente foi se afastando dele à medida que os negros e pardos adquiriam desenvoltura e se conduziam como não deveriam dentro de uma sociedade escravocrata altamente hierarquizada. Em setembro de 1822, a junta de Gervásio Pires foi forçada a renunciar diante da pressão do corpo de tropa na província. O golpe guindou ao poder uma nova junta, que recebeu, por parte dos liberais, a alcunha de “junta dos matutos”, por ser formada por senhores de engenho da Zona da Mata. Essa junta era simpática à tal “causa do Rio de Janeiro”, mas nem precisava mais: era setembro de 1822. Pedro rompera com as cortes. Estando o Brasil independente, Pernambuco seguiria junto ao menos até o fechamento da Assembleia Constituinte, no final de 1823. Depois disso é a Confederação do Equador, uma outra história para se contar.


Marcus J. M. de Carvalho é Professor Titular de História da Universidade Federal de Pernambuco. marcus.carvalho@ufpe.br



Para saber mais:


CABRAL DE MELLO, Evaldo. A outra Independência: O Federalismo Pernambucano, 1817 a 1824. São Paulo: 34, 2004.


VILLALTA, Luiz C. Pernambuco, 1817: encruzilhada de desencontros do Império luso-brasileiro. Notas sobre as ideias de pátria, país e nação. Revista USP, São Paulo, vol. 58, p. 58-91, 2003.




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